Refiro-me ao ministro do Supremo Tribunal Federal. Sim, a Ricardo Lewandowski. No dia 15 de maio deste ano, publicou um texto na Folha, na página Opinião e no espaço Tendências/Debates, sob o título Fora da Constituição não há salvação. E inicia fazendo a citação do célebre poema Intertexto, de Bertolt Brecht, que nos convida a pensar sobre nós mesmos, como animal político que fazemos parte de uma sociedade caracterizada por contradições e desigualdades, a nos impor o desafio de questioná-la, a todo instante, a toda hora e a todo minuto. Esse desafio decorre da responsabilidade que todos devemos ter no sentido de não ficarmos inertes ante a apropriação e expropriação dos nossos direitos. Eis o poema de Brecht, citado por Lewandowski: Primeiro levaram os negros / Mas não me importei com isso / Eu não era negro / Depois prenderam os miseráveis / Mas não me importei com isso / Porque eu não era miserável / Depois agarraram uns desempregados / Mas como tenho meu emprego / Também não me importei / Agora estão me levando / Mas já é tarde. / Como eu não me importei com ninguém / Ninguém se importa comigo.
E Lewandowski, no ensejo da citação, afirma que "essa advertência nos recorda que em situações de crise é preciso observar os princípios, guardar coerência, agir com desassombro, sem perder a serenidade e, sobretudo, mostrar-se solidário para com os semelhantes". Tem razão o ministro. E palmas para ele. Estamos a viver um momento histórico de grave carência de solidariedade. Se o ministro resolvesse emoldurar o seu texto de outras citações de Bertolt Brecht, poderia tê-lo feito, porque, além de ter sido um grande dramaturgo, era um frasista dos melhores. Cito algumas: - Não basta ter sido bom quando deixar o mundo. É preciso deixar o mundo melhor; - Que continuemos a nos omitir da política é tudo o que os malfeitores da vida pública querem; - Melhor do que roubar bancos é fundar um. O que é roubar um banco comparado a fundar um? Convenhamos que esta última é de uma sutileza e genialidade contemporânea. Banco não tem solidariedade com ninguém. Cliente de banco paga por qualquer serviço, ainda que inexistente. Mas paga. Ou vai para o cadastro de mau pagador. É a regra. Fugir dela dá uma trabalheira dos diabos. Mesmo em bancarrota, os balanços dessas instituições financeiras só mostram lucro. Depois, quando se dá a intervenção, é que se vai saber que o lucro era apenas para os seus sócios controladores, que continuarão ricos, com vastíssimo patrimônio, enquanto os investidores vão pro brejo.
Lewandowski publica esse texto com a finalidade de dizer que a tábua de salvação desse momento de falta de tudo consiste no incondicional respeito à Constituição Federal. E esse respeito, como não poderia ser de outra forma, deveria partir do próprio Supremo do qual o ministro faz parte. Há ministros do STF que antecipam a sua posição jurídica (o voto) sobre questões que poderão chegar a sua apreciação. Há ministros que participam de reuniões políticas para tratar de questões políticas. E assim a Constituição Federal, da qual o STF é o guardião, perde referência nesse embate narcisista que se projeta midiaticamente. A perda dessa referência gera insegurança jurídica Um bom exemplo foi dado pelo ministro Herman Benjamin, em exercício no TSE, que se manteve em silêncio sem nenhuma manifestação sobre o seu voto no julgamento da chapa Dilma-Temer. Desse seu silêncio, que ele denominou de "silêncio beneditino", decorreram meras especulações de todas as mídias. O é que absolutamente natural.
Costumo sempre dizer o óbvio: julgar é uma das funções mais difíceis que existem. Agrada e desagrada. Muitas vezes não agrada nem quem tem a seu favor uma decisão favorável, porque não conseguiu tudo o que pretendia, embora lhe fosse concedido o essencial da sua pretensão. A lei é apenas um dos elementos do julgamento. O ministro aposentado do STF Eros Grau afirma que "a norma se encontra em estado de potência, involucrada no texto, e o intérprete a desnuda". Jethro Brown também esclarece que "até ser interpretada, a lei não constitui realmente direito. É apenas o direito ostensivo". Além do mais, acima da lei e do direito, está a justiça, que deve ser concretizada ao ser proferida a sentença. Uma sentença injusta é muito mais cruel do que uma lei injusta. Quem faz a norma ser justa é o intérprete na sua aplicação, sopesando os valores éticos e morais, que são produzidos e estão imanentes no seio das relações sociais.
Por isso é que, na frase de Brecht, citada acima, não basta que o juiz seja incorruptível, é impositivo que faça justiça nos seus julgamentos. A lei não é a expressão da justiça, porquanto ela traz, em si, valores e antivalores. Ao aplicador do direito, e não da burocrática norma escrita, cabe a árdua função de separar o joio do trigo, dando ao texto legal o sentido valorativo extraído do humanismo da regra. Num estudo de Recasens Siches, há uma afirmação que diz que a norma jurídica é a vida humana objetivada. Eis uma verdade que desafia o julgador a ver na lei não apenas um mero instrumento de solução de conflito. Mas um meio humanista de realização da justiça, só concretizada com a garantia e efetivação da igualdade. De outro modo, caminharemos para, num futuro não muito distante, ter um robô fazendo, de modo bem melhor, o que certos burocratas fazem na função de julgadores. E as sentenças serão produzidas, a cântaros, de conformidade com as tendências estatísticas do momento. Mas, reclamar?! É tarde. Como ninguém se importou até agora. Ninguém se importará no futuro. Brecht está certo.Palmas para Lewandowski