Aureliano Neto*

A Constituição Federal concede ao cidadão brasileiro, como garantia inderrogável, o direito de ser julgado por seu próprio semelhante, nos casos de prática de crimes dolosos contra a vida. É o que diz o art. 5.º, inciso XXXVIII, que assegura, ainda, a plenitude da defesa, o sigilo das votações e a soberania do que for decidido. O julgamento do tribunal do júri é o que mais se aproxima da definição de democracia que nos foi dada por Lincoln, em seu célebre discurso em Gettysburg, em julho de 1863: "...esta nação guiada por Deus tenha um renascimento da liberdade, e que o governo do povo, pelo povo e para o povo não pereça por causa da terra". Passa esse legendário presidente a figurar no cume da história universal, como governante que deu relevância à soberania popular. E é justamente nos Estados Unidos que a característica mais marcante do sistema processual se assenta nas causas cíveis e penais, decididas pelo tribunal do júri. Assim nos ensina Paulo Rangel, em Tribunal do Júri, Atlas, 4. Ed., 2012, p. 45, acrescentando, ainda, que os jurados têm a função de educar a sociedade sobre os valores morais, democráticos e legais. A base do tribunal do júri americano é a Constituição, albergando direito substantivo e fundamental de todo e qualquer acusado.
Como advogado, não poucas vezes atuei no tribunal do júri. Como magistrado, presidi várias sessões, sobretudo quando fui juiz titular da 3.ª Vara Criminal de Imperatriz, à época, muito conturbada com a grande incidência de crimes dolosos contra a vida. A minha experiência, atuando como advogado e, depois, como magistrado, me diz que o tribunal do júri, como qualquer juízo, erra e acerta. No mais das vezes tem mais acerto do que erro. Os juízes de fato, que formam o corpo de sentença, têm o ciência empírica da realidade e, o que é mais importante, sabem quem é a vítima e conhecem o acusado. Com mais facilidade, nos nossos dias, dada ampla de divulgação pelas mídias.
Por que "Os Irmãos Naves e o Júri"? Explico: esse caso foi julgado pelo tribunal popular e é um dos maiores exemplos de erro judiciário - ressalve-se - não praticado pelo júri, mas pelo tribunal de apelação, que anulou o julgamento de absolvição e, dando provimento ao recurso do órgão acusador, cassou a decisão para condenar os réus a 25 anos e 6 meses de prisão. Anos após, no dia 24 de julho de 1952, a vítima, Benedito Pereira Caetano, reaparece vivinha, retornando para fazenda dos pais, onde foi encontrada e presa pela polícia.
Segue o relato do caso dos irmãos Naves, vítimas de um grave erro judiciário, tendo sido absolvidos pelo tribunal do júri e erradamente condenados pelo tribunal de apelação: - "O rumoroso caso começa quando os irmãos Sebastião Naves, à época com 32 anos, e Joaquim Naves, 25 anos, firmam sociedade com o primo, o mercador Benedito Pereira Caetano. Os três dividem o mesmo caminhão para realizar trabalho diário. O ambicioso Benedito, acreditando em possível alta das mercadorias, toma grandes empréstimos na praça. No entanto, repetidas quedas de preços começam a preocupar o comerciante, afundado em dívidas. Benedito procura oferta e, em ato desesperado, vende o produto a valor baixo, inferior ao montante da dívida. O apurado com a venda é insuficiente para fazer frente aos credores, embora somasse a polpuda quantia de 90 contos de réis. Indeciso, com dívidas e com o bolso tilintando... Benedito se deslumbra com a possibilidade de livrar-se do poço sem fundo de cifras negativas em que se enfiou e foge na madrugada de 29 de novembro. Os sócios, irmãos Naves, parceiros diários de labuta, dão conta do desaparecimento do amigo. Vão ao delegado, que inicia as apurações. As investigações corriam sob os cuidados do delegado Ismael do Nascimento, mas uma troca de comando altera o desfecho do caso. Assume o cargo o tenente Francisco Vieira, que dá novos rumos ao inquérito. Convoca e reconvoca testemunhas, ouve boatos e conclui que os irmãos Naves eram os maiores interessados no sumiço e morte do primo Benedito. Sem perder tempo, prende-os. Os irmãos e demais familiares passam por sessões de tortura pelos beleguins do mão de ferro. O chefe de polícia aponta os matadores e faz a opinião pública, certo da proximidade das confissões. Mas elas não surgem tão rapidamente. Só após 15 dias de tortura em um matagal afastado da cidade, em 12 de janeiro de 1938, o delegado afirma ter conseguido a 'confissão particular' de Joaquim. A 3 de fevereiro é a vez do irmão assumir a culpa. Pronunciados, os Naves têm como defensor o advogado João Alamy Filho, que ingressa com habeas corpus mostrando o equívoco que era cometido. Baldadas as tentativas, a dupla tem prisão decretada. Chega o dia do julgamento. A defesa é apresentada. Sete dos seis jurados votam pela absolvição dos Naves. A promotoria não se dá por satisfeita e recorre, pedindo e conseguindo anular o julgamento. Em nova decisão, confirma-se o placar favorável aos irmãos. O tribunal, no entanto, altera o veredicto outra vez, com ajuda da ditatorial Constituição de 1937. Nesse cenário adverso, os irmãos são condenados a 25 anos e 6 meses de reclusão, posteriormente reduzidos para 16 anos. Após 8 anos e 3 meses encarcerados, em agosto de 1946, os Naves ganham liberdade condicional por comportamento exemplar. Já é tarde. Joaquim, acometido de longa e dolorosa doença, morre nos alvores da liberdade. O irmão sobrevivente, incansável, inicia a busca para provar a inocência. Boas notícias custam a surgir. O sol volta-lhe a brilhar no inverno de 1952, quando aparece, em lugar distante, vivinho da silva, a "vítima morta". Só então, 12 anos após as falsas acusações, é reconhecida a inocência dos irmãos Naves." Só que bem tarde, a demonstrar que o júri nem sempre é um território nebuloso de prática de injustiça. Ao contrário. A sua história é que melhor diz dos seus acertos. Moral desse erro: deve-se ter cuidado com a pressa em acusar, e muito mais ainda com a pressa de condenar.

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