Muitos foram da geração desse nostálgico transporte. Fora o principal veículo que conduzia a população de São Luís para o trabalho ou para o lazer. Pensar nos bondes, a trafegarem pelas vielas da ilha e a vencerem a distância de suas estreitas ruas, faz a gente rememorar uma São Luís que vai bem distante nesses quatrocentos e dois anos de vida, mas que ainda seus indeléveis resquícios são encontrados sorrateiramente em alguns lugares: Praça João Lisboa, ou na ampliada rua das Cajazeiras, cantada por Ferreira Gullar no poema Improviso para moça do circo, como uma rua que chovia muito, chovia demais, e as águas invadiam a cozinha. Por essa rua ladeirosa, os bondes subiam cansados, quase pedindo para serem carregados pelos passageiros, até chegar ao canto da farmácia na rua São Pantaleão.
Toda beleza poética de São Luís, em versos ou prosa, não pode prescindir dessa figura aconchegante do bonde, que era o meio de construção da solidariedade. As pessoas, no bonde, se conheciam. Cumprimentavam-se com o fervor do reencontro. Trocavam conversas. Liam os jornais, que eram vendidos pelos jornaleiros, ao brado retumbante das manchetes sangrentas ou não. O Dia, O Imparcial, O Globo e o Jornal Pequeno. Pagavam-se entre si, como cortesia do reencontro solidário, as passagens. Driblavam, com o cinismo dos puros, o cobrador. Ou fingiam que a passagem já tinha sido paga. O bonde, portanto, tinha esse lado maniqueísta, congregando o bem e o mal, até porque havia a pitada do falatório. E todos se conheciam. O mundo estreitava-se no bonde: do estribo aos bancos. Nesse exíguo espaço de convivência, os fatos, temas da conversa e das fofocas, eram a vida, com um significado efêmero, mas, como se fosse um seriado de nossos cinemas de então, tinham continuidade na próxima viagem.
Esse era o mundo do bonde. De uma sociedade vivida nesses mais de quatrocentos anos. Ou, pelo menos, ao evocar a sua lembrança histórica, por ele registrada parte importante desse mundo. Pequeno e, ao mesmo tempo, grande, tão grande, que os trajetos da Praça do Cemitério à João Lisboa, passando pelo Canto da Viração - parada obrigatória que levava à Praça Gonçalves Dias ou ao centro da cidade -, assemelhava-se a uma interminável viagem, em que os passageiros, na conversa entre si, invadiam uns a vida dos outros, na solução dos problemas pessoais, que eram, solidariamente, partilhados.   
Nesse mundo, cavalheiro era, sem mais nem menos, cavalheiro. As damas eram tratadas como damas. Tinham, por isso mesmo, o indeclinável direito de viajar com mais conforto, sentadas. Os homens, acomodados nos estribos, cediam, em homenagem ao sexo feminino reverenciado, seus lugares, e se submetiam ao malabarismo dos cobradores, que iam de um lado a outro, recebendo o dinheiro da passagem, a tilintarem nas mãos as moedas, na linguagem gestual da cobrança.
Quantas histórias foram contadas, criadas e aumentadas nesses trajetos, nos quais os bondes se arrastando, sem maiores pressas pelos trilhos - ninguém tinha pressa! -, e os nossos sonhos e utopias iam sendo construídos, reconstruídos e desconstruídos. Quantas namoradas foram conquistadas, e quantos namorados sucumbiram, ante a veemência de um olhar de esguelha, avassalador, do ato extremo da conquista amorosa. É... O bonde tinha esse lado romântico, embora seja lembrado quase sempre como um símbolo da nostalgia passadista. Serviu de palco para os nossos Romeus e Julietas, sem o desfecho trágico dessa monumental obra de Shakespeare. Enfim, muitos anônimos, que estão por aí, assumiram a caricatura idílica shcakespereana, sem necessidade do suicídio. Apenas o bonde a servir de palco para o enredo do encontro ou desenlace.
Os nossos bondes eram abertos e fechados. Por serem mais ventilados, gostava mais dos abertos. Eram mais confortáveis. E a gente usava o estribo. Para amparar-se, segurava-se no balaústre, uma espécie de corrimão vertical, que servia de apoio para o passageiro. A viagem era sempre calma, salvo um descarrilamento ocasional. O motorneiro no comando badalando a sineta, como a anunciar: - Lavem o bonde!
Dizem que Rubem Almeida, um dos nossos grandes intelectuais, que o conheci como professor do Liceu, tinha a mania de ler no bonde, mas, de modo inusitado, ia destacando dos livros e jogando fora as folhas que não mais o interessava. Não tive o prazer de presenciar essa cena de desprendimento literário. Fico apenas a imaginar o mestre Rubem, com aquelas suas sobrancelhas marcantes, a fazer a sua leitura no bonde, tentando reeditá-la num dos nossos apressados ônibus, cuja velocidade do ir e vir pelas nossas esburacadas ruas, na lógica do capitalismo e precisando faturar, sem a preocupação de dar comodidade aos seus passageiros. Com certeza, o mestre sucumbiria à irritação.  
Pois é. O bonde, que viveu nesse espaço de tempo de mais quatrocentos anos da poética vida de São Luís, teve o sabor da solidariedade e da comodidade nostálgicas.

P.S.: Essa crônica homenageia os quatrocentos e dois anos de vida de São Luís, comemorados no dia 8/9.