Aureliano Neto*
O dia amanhecera nublado, com incessantes respingos de chuva, que tomaram toda a noite, lembrando-me passagem da narrativa de A Bagaceira, de José Américo de Almeida, que nos mostra o aguaceiro torrencial a banhar as terras brutas do sertão. Mas, o sol dá início, ainda de forma tímida, à limpeza de uma parte do céu, rompendo com os seus raios - tíbios pela força do tempo - as nuvens mais carregadas. O dia se anunciava, não com a certeza se chuvoso ou de sol. O tempo nebuloso me impunha essa dúvida. Pus-me bem cedo fora da cama, para ficar atento à cotidianidade do alvorecer. Como acentuam Machado de Assis e Rubem Braga, dois narradores ímpares das nossas letras, estava a fazer as minhas abluções matinais. Concluídas, saí, com leve bocejo, para apreciar as flores, cultivadas nos jarros, grandes, médios ou pequenos, que se espalham por todo o quintal, dando à paisagem um colorido alegre e festivo, mesmo de uma primavera permanente.
Nesse périplo matinal, em pequeno e aconchegante espaço, libertei-me do deserto pessoal, que nos aprisiona no início do novo dia. Somos encarcerados pelas nossas próprias interrogações: como realizarmos os sonhos e projetos desse novo dia? Além outras questões que permeiam as nossas preocupações. Lembrei-me então de Machado de Assis, que, em passagem de Memorial de Aires, afirma que "a alma da gente dá vida às coisas externas, amarga ou doce, conforme ela for ou estiver". É..., nós temos esse poder criativo, de tornar vivas as coisas, ainda que de todo inanimadas. Delas extraímos a beleza, a alegria de viver e de saber viver apenas com o regozijo de apreciá-las. É o que procuro fazer. E a natureza tem sido pródiga em me possibilitar dar vida às coisas externas, que se revestem de intensa doçura. A nossa alma pode ser estreita para encampar sentimentos contraditórios, ou não, mas tem sempre espaço para acolher a beleza estética que a natureza nos oferece, sem qualquer ônus, e fazer-nos o poeta que todos nós somos a todo tempo.
Todas as manhãs, com chuva ou com sol, nesse ambiente de cores, fico a observar dois beija-flores. Pela concepção física dessas duas pequeninas aves, trata-se de um casal, que nos visita cotidianamente. Vêm alimentar-se do néctar das flores, que escolhem, ao seu critério, nas tonalidades que são cultivadas, como se a floricultora estivesse a compor um poema naturalista, pintado de branco, vermelho, amarelo ou rosa. A natureza diz tudo, obrigando-nos a dar às coisas o sentido que ela expressa. Os beija-flores transitam, a abanarem, com sofreguidão, as ínfimas asas, buscando, no tocar leve do seu alongado bico, o néctar que melhor atende ao seu paladar. A mim me parecem sempre inquietos. Porém não se trata de uma inquietude que reflita serem aves de difícil convívio social. Pelo contrário, parecem íntimos, habituados com a nossa presença, dela não fazendo o menor caso. Daí voarem de um lado para o outro, com total liberdade. Sabem, é verdade, que são livres, razão pela qual reiteram o canto de sua chamada, que marca a sua presença.
Assim, os beija-flores produzem, no voejar ligeiro e lépido, um canto para realizarem a comunicação entre si ou com o mundo, ou para marcarem o seu trajeto - uma espécie de sinfonia, cuja tradução onomatopaica deduzo que não refoge a esse estribilho: psifiu... psifiu... psifiu... Mas encantador. Chegam os dois em voo rápido e de extrema agilidade. Ora dão marcha-ré, ora fazem ligeira parada, para permanecer, em segundos, imóveis no ar, como a nos questionar sobre a sua especial destreza em desafiar a gravidade. O voo rápido e ágil, o canto ligeiro e a capacidade de parar no ar, enquanto as asazinhas batem incessantemente, fazem do beija-flor não uma mera ave da ordem dos Apodiformes, cuja existência é quantificada em 322 espécies, sendo originário da América, mas vivendo em várias partes do mundo, do Alasca à Terra do Fogo, com inclusão do Brasil. Representam o movimento estético da vida, em vista da fragilidade física desse pequeno ser, cujo corpo é de seis a doze centímetros de comprimento.
Os dois beija-flores que nos visitam todos os dias, tanto pela manhã como à tarde, produzem em mim uma felicidade epifânica. Ao vê-los, batendo as asas e voando de um lado para outro, comovo-me com esse encantamento da natureza. O voejar dessas aves é um verdadeiro balé, tal qual a pureza da dança do renascentismo italiano. Para realizar essa dança, há necessidade de um conhecimento empírico, que só a prática dá um sentido estético ao movimento do beija-flor. Um deles é de porte menor que o outro. Dizem os entendidos que a fêmea é maior que o macho. Constroi o ninho, e ela própria cuida da incubação. Ambos, sem discriminação, têm uma visão apurada, muito apurada, para identificar as cores, representadas pelas flores, disseminadas pelo jardim, onde buscam o alimento. Em algumas regiões, são conhecidos por colibri, cuitelo, chupa-flor, binga, guanambi, guinumbi e outras denominações. As várias denominações regionais pouco interessam. O que destaco é poder apreciá-los no momento em que param no ar, brandindo, em alta velocidade, as asas, para sugarem das flores o alimento que os mantêm ativos a nos mostrar a essência da vida. Isso é a possibilidade real de sonhar com a natureza, sendo, por esses seres, esculpido o encanto de um poema alado, no início de cada manhã. aureliano_neto@zipmail.com.br
Comentários