(Olha a faca!) Olha o sangue na mão. Ê, José! Juliana no chão. Ê, José! Outro corpo caído. Ê, José! Seu amigo João. Ê, José!... Amanhã não tem feira. Ê, José! Não tem mais construção. Ê, João! Não tem mais brincadeira. Ê, José! Não tem mais confusão. Ê, João!... Esta canção de Gilberto Gil, Domingo no parque, relata a história de dois amigos: José, o rei da brincadeira, e João, o rei da confusão. Um trabalhava na feira, e o outro na construção. Dois personagens que continuam persentes no cotidiano de nossas cidades. Mas João, o rei da confusão, não queria brigar. José, o rei da brincadeira, guardou a barraca e sumiu e foi fazer no domingo um passeio no parque, onde avistou Juliana, com uma rosa e um sorvete na mão. Juliana era o seu sonho e sua ilusão. E aí tudo foi girando, o sorvete e a rosa, a rosa e o sorvete, Juliana no chão e o amigo João não tem mais construção, não tem mais confusão, e o sangue na mão de José. Olha a faca! E de faca matou ao amigo João e a Juliana, a sua paixão.

Olha a faca! (Olha a faca!) Repete em alerta o canto épico para o desfecho passional. Amanhã não tem feira. Ê, José! Não tem mais construção. Ê, João! Não tem mais brincadeira. Ê, José! Não tem mais confusão. Ê, João!...
Toda vez, quando ouço essa canção, e a ênfase do refrão – Olha a faca! –, recordo-me das confusões das feiras e mercadinhos, que terminavam em sangrentas brigas de faca. A faca era a arma usada como instrumento de ataque para que o rival agredisse o seu desafeto e o matasse, ou lhe causasse graves lesões. À época, não era comum a utilização de armas de fogo. Quase não se fazia uso do revólver, a não ser quem fazia parte de instituições policiais.
Três cenas sempre me acorrem. A primeira delas: bem criança, estava na janela, num dia chuvoso. Dessas chuvas intermitentes, que se estendem da tarde para noite. Vi uma confusão no final da rua, na parte de baixo. Nesse tumulto, com as pessoas correndo, inquietas, um carro Prefect, cor preta, parou bem na esquina e nele foi introduzido um homem. Logo a notícia correu, como vento forte que vem do mar. Diziam: – Mataram Pedro Rico! Conhecia seu Pedro. Tinha ares de quem possuía boa vida. Estava sempre vestido de linho branco e ostentava alguns fragmentos ostensivos de dente de ouro.
Curioso, fui até o burburinho. O chão estava lavado de sangue. Da entrada da casa, porta e janela do seu Pedro à esquina da rua. Logo a Rádio Ribamar, que ficava no Apicum, dava a notícia da sua morte, ocorrida ao chegar ao Pronto Socorro da Rua do Passeio. O seu desafeto, com o qual tivera um desentendimento numa mesa de jogo, segundo disseram, meteu-lhe a faca na jugular, de cima para baixo, ferindo-o mortalmente.
Uma segunda cena. Na Vila Beça, vi caído no chão, no estertor, um homem que havia sido agredido de faca. As pessoas em volta apenas o olhavam, enquanto uma ou outra punha sobre as suas mãos cruzadas uma vela, para iluminar os seus últimos momentos de vida. A terceira cena era uma briga. Um dos contendores com uma faca na mão, e o outro a defender-se com um tamborete. Os dois completamente bêbados. Enquanto um metia a faca, o outro se defendia lançando o tamborete na direção do adversário. Em torno, o povo assistia aos gritos, suspirando e gemendo, àquela tétrica cena, na expectativa de que, a qualquer momento, o agressor armado de faca matasse o que se defendia com o tamborete.
A faca sempre foi instrumento de luta, e muito usada para prática de assassinatos. Um crime brutal, revestido de muita crueldade. No passado e ainda no presente, boa parte dos crimes passionais é realizada com a faca. O homem traído que mata a mulher de faca. E, do mesmo modo, a mulher enganada ou maltratada que mata o companheiro de faca. Irmãos que se desentendem, em disputa patrimonial, que se destroem fazendo uso dessa arma cruel e mortífera.
Olha a faca! Olha a faca! diz Gilberto Gil em Domingo no parque. Olha o sangue na mão. Ê, José! No Rio, na lagoa Rodrigo de Freitas, um médico ciclista, de 57 anos de idade, é esfaqueado. E morre. A estudante chilena, de 32 anos, assaltada, levou uma facada no pescoço. Não morreu. Mas quase. Ou não se dava muito valor à faca, porque muita gente está morrendo de bala perdida, ou de bala bala, aquela que não se perde, porque, direcionada para a vítima, matando-a sem compaixão, como ocorreu por esses dias, em data contemporânea à morte do médico, no morro do Dendê, quando foram assassinados um estudante de 13 anos e um trabalhador de 24, por tiros desferidos por policiais. Não sei quais das duas mortes são mais importantes ou menos ou mais cruéis: a da faca ou a das balas. Num caso, a vítima era um médico ao ser assaltado; no outro, moradores de favelas, assassinados por policiais, sem nenhum motivo. Onde a comoção? A morte insana, provocada, ou o instrumento que tira a vida? É a do médico, que causa comoção midiática, ou dos favelados, assassinados pelo Estado a tiros? Apenas são mortes, dor, sofrimento. Fica o alerta: olha a faca! Olha a bala! Olha a morte! Olha a vida!