Aureliano Neto*
Uma boa frase, bem construída, me contamina, exorta, me revive. Retira-me da letargia da inércia. Rubem Braga fez uma crônica, em que relata o drama da mulher ao seu lado e o temor lacinante, vivido num avião, que sem teto e balançando por torrencial chuva, circulava em escuras nuvens, sem poder aterrissar no aeroporto de São Paulo. Ao seu lado, uma mulher, cujo sedutor braço direito se apegava ao seu, com medo de que o avião viesse a espatifar-se daquelas alturas. Braga, com o seu jeitão arredio, tentava dar garantia a sua efêmera companheira de infortúnio de que nada de grave aconteceria. Vendo que todos esforços eram em vão, socorreu-se da aeromoça, que veio ao auxílio daquela delicada situação, e relata Rubem Braga que a aeromoça procurava convencer a mulher de que tudo ia bem e nada de mal aconteceria: - O avião venceria a tormento e pousaria sem mortos ou feridos, dizia enfática. Na ânsia de conter os ânimos, a aeromoça sorria o riso das ocasiões da falta de teto. O cronista dá a entender que o sorriso é burocrático, de uma profissional preparada para superar aquela situação difícil. Mas deixou a frase sutil: o sorriso de ocasiões da falta de teto.
Fernando Pessoa, aqui sempre citado, nos deixou milhões de frases. Uma delas que ficou famosa e, em tempo passado, muito citada em salas de aula, foi esta: "minha pátria é a língua portuguesa". Mas o bardo português ressuscitou a velha frase dos antigos navegadores, que dizia que "navegar é preciso, viver não é preciso". Ao fazer essa citação, Pessoa justifica que queria para ele o espírito dessa frase, "transformada a forma para a casar com o que eu sou: viver não é necessário, o que é necessário é criar". E assim Fernando Pessoa passou toda a vida vivendo para criar. Perdeu a essência da vida para si mesmo, para dá-la para a humanidade. Foi o que disse o autor de Tabacaria: "Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso tenha de a perder como minha." Por isso, navegar é preciso, viver não é preciso. Esse o sentido da entrega, apropriado por Pessoa, que dizia que o romântico cria a realidade, já o realista apenas a descobre. Daí a certeza de que o poeta é um fingidor, que chega fingir que é dor a dor que deveras sente.
Nosso eterno dramaturgo Nelson Rodrigues, considerado por muitos reacionário e pornográfico, negava esse rótulo e sapecava as frases mais irônicas, afirmando que devotava à direita o mesmo horror que tinha pela esquerda. E defendia o amor eterno: - Todo amor é eterno e, se acaba, não era amor. Adotava, por suas frases, posições moralistas, que negavam a idéia de pornografia de seus textos teatrais, asseverando que o sexo sem amor é uma cristalina indignidade, para concluir com veemência: - Sempre que o homem ou a mulher deseja sem amor se torna abjeto. Uma mulher não tem o direito de se despir sem amor. Mesmo o biquíni, mesmo o decote, e repito, nenhuma forma de impudor é lícita se a criatura não ama. Nelson, o reacionário, elevava o amor como justificativa de todos os pecados. Aliás, se há amor, não há indignidade. Tudo se justifica se o ato se reveste de amor. Conclusão: o amor é eterno, não enquanto dure, como enfatiza o lirismo do poeta Vinícius de Moraes, mas enquanto amor.
As frases são muitas e eternas e vão se sucedendo. De Fernando Pessoa, Nelson Rodrigues, grande frasista, a Leminski, esse curitibano que se foi aos 44 anos, e, no poema Razão de Ser, numa das belíssimas estrofes, manifesta a sua razão do seu sentir: "Escrevo porque amanhece, e as estrelas lá no céu lembram letras no papel, quando o poema me anoitece." Por isso mesmo, em outro momento, nos diz que "quando chove, eu chovo, faz sol, eu faço, de noite, anoiteço, tem deus, eu rezo, não tem, esqueço". São sentimentos extravasados em frases, poemas, pedaços de todos nós, que se juntam aqui e ali para formar castelos de sonhos, de utopias e de todas as fantasias, que nos constroem durante todo o curso da vida, antes que a morte nos separe. Mas, ainda assim, ficam, em que pese Oscar Niemeyer ter dito que a vida é um sopro. Quem sabe um sopro de um gigante, a projetar a sua força existencial em todo o espaço de um tempo eterno.
Mas é da canção popular que nos vem uma frase que perpetua o sentido do viver sem volta, porque entoa o cancioneiro que voltar quase sempre é partir para um outro lugar. O que quer dizer: não há volta, o passado ficou lá, bem lá atrás, embora Machado de Assis nos diga que o passado é a melhor parte do presente. Pode ser, sem ser bem essa a verdade, conforme enfatiza o Bruxo do Cosme Velho em Papéis Avulsos: a verdade é essa, sem ser bem essa. Aproveito para reeditar a minha frase dita alhures: viver é um nunca acabar de ser. Assim, duas frases podem sintetizar esse inexorável sentido. Fernanda Montenegro, do alto dos seus mais de oitenta anos, sendo indagada sobre a velhice, disse que a maior tragédia da juventude é a morte. E alguém, que infelizmente não consegui identificar, manifestando-se ainda sobre a idade, afirmou com filosófica sabedoria popular: - o pior da velhice é não se chegar a ela. Poucos têm dúvida a esse respeito. A velhice é a ânsia de vencer a nossa finitude. Se não se morre, fica-se velho. É o destino da superação da corrida de obstáculos que se trava. Mário de Andrade, ao contar o seu tempo, chegou à trágica certeza de que tinha muito mais passado que futuro. Se o poeta modernista não chegou à velhice, pelo menos o seu passado justificava o pouco tempo de viver. Uma pena! Deveríamos ser eternos, ao menos enquanto durássemos.
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