Vai e vem, ressurge essa tormentosa questão, que já deveria ter sido ampla e seriamente discutida pela sociedade brasileira. Mas, acentue-se, uma discussão de forma responsável, com dados concretos e não com elucubrações de caráter panfletário. Ainda assim, tem-se tentado fazer, em alguns foros, ora com algum êxito, ora sem nenhum. Ultimamente, os debates estão muito fechados, bastante inférteis. Quando alguém resolve se manifestar, não tem conhecimento, ou não tem dados a respeito, e faz uso de uma linguagem apelativa, recorrendo a meras frases populistas, que não ajudam a encontrar solução para os graves problemas, que não são apenas do Judiciário brasileiro, mas de todos os segmentos de nossa sociedade, quer institucionalizada politicamente, como função de poder, quer institucionalizada socialmente, como expressão da cidadania participativa.
Refiro-me à morosidade judicial. O que, em síntese, quer dizer: quebra do compromisso essencial da função jurisdicional, a qual tem como fim responder com agilidade às soluções dos conflitos interindividuais ou coletivos que lhe são postos pelos jurisdicionados, que deveriam resultar em solução pacífica, conforme recomenda o Preâmbulo da Constituição de 1988.
Venho acompanhando as graves questões que têm sido levantadas pela Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB, destituídas, diga-se logo, de qualquer laivo corporativista. Todos os debates aventados pela AMB têm natureza eminentemente institucional, porquanto denuncia, com base em dados concretos, a situação alarmante em que vive a Justiça brasileira, que tem sido usada predatoriamente pelos grandes grupos econômicos – instituições financeiras, operadoras de telefonia, planos de saúde e inúmeros outros – para postergar prestações de serviços qualificados e dignos ao vulnerável consumidor brasileiro.
Em texto do desembargador aposentado Rizzatto Nunes, publicado sob o título “O atendimento ao consumidor está cada vez pior”, tematiza esse magistrado que “atender bem exige, pois, estudo e investimento. Em sistemas e pessoas. De nada adianta criar métodos automáticos de resposta sem conexão com os fatos (...), nem ficar fazendo o tempo todo pesquisa automática de satisfação de atendimento. É necessário ouvir de fato o cliente; saber o que ele pensa dos produtos e serviços oferecidos; entender como ele os usa, como ele os avalia; é necessário dialogar com ele. (...) De que adianta criar uma ‘ouvidoria’ que não ouve? Nem lê? Ou um Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC) que não resolve problemas? O consumidor deve ser olhado em sua integridade pessoal e real, tal como ele é e se apresenta”.
A prestação de serviço é deficiente. As agências reguladoras são omissas. Atende-se mal. Nega-se tudo ao consumidor, ainda que sejam os direitos básicos (CDC, art. 6.º). Frauda-se. Burlam-se as normas de proteção. Tudo na crença da morosidade judicial e na certeza de que os danos morais são fixados em valores irrisórios. Muita das vezes apenas para fazer de conta. Outra das vezes nem tanto. Ou tanto faz, porque as multas obrigatórias têm perdido o seu sentido de obrigatoriedade. Constituem-se em outro faz de conta. Entram aí critérios de razoabilidade ou, equivocadamente, de proporcionalidade. Critérios sem critérios. Ao alvedrio do STJ, dos tribunais e turmas recursais. Com isso, fica o dito pelo não dito. Quem paga a conta é o jurisdicionado. E as instituições vão perdendo credibilidade. A morosidade se acentuando. Não para o Judiciário, o que é pior, mas para o Estado de direito como instituição política. Juízes, em decorrência, são desrespeitados. Agredidos. Ameaçados de morte. Se fulano de cima pode, eu, aqui de baixo, também posso. Enfim, todos são iguais em direitos e desrespeitos.
São 95 milhões de processos. Poucos juízes. Se houvesse mais, daria no mesmo. Como afirma José Carlos Kulzer, assessor da presidência e coordenador da Comissão de Assuntos Legislativos da AMB, em artigo publicado no AMB Informa: “Nossa cultura jurídica, marcada pelo individualismo e pelo formalismo, sobretudo a transmitida aos estudantes de Direito. Daí que os dados estatísticos, quando enaltecem apenas os números – como fazem as famosas metas de produtividade, que tomaram de assalto às corregedorias e desviaram centenas de magistrados da sua verdadeira função (que não é apenas ‘julgar’ com conhecimento, convicção e justiça) –, estão apenas reforçando esta cultura: quanto mais ações julgadas, mais produtiva (e mais excelente) é a unidade judiciária. A rigor, constatado o vício de cultura, o método eleito deveria estimular a resolução de conflitos, e não, apenas, a solução de processos”. Com essa cultura da litigância, chega-se à conclusão devastadora: o sistema processual de solução adversarial está inviabilizando a concretização do direito com o uso predatório do Judiciário.
Os Juizados Especiais, instituídos como solução desses entraves formais, perderam sua essência, transformando-se em imensos elefantes a atravessar uma tempestade de areia de litígios, tendo a conciliação apenas como marketing. O que era o sonho da solução pacificadora está na iminência da falência definitiva. Não mais se concilia, produzem-se sentenças, que perderam a força da definitividade, com a indébita interferência de tribunais e do STJ. E, com isso, caminhamos para um triste fim de uma Justiça que veio com a finalidade libertadora, ora sendo vitimada pelo uso predatório do Judiciário.
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