Aureliano Neto*

Não era dia de sol nem de chuva. Nublado. Com alguns tímidos raios solares a chegarem com intermitência, com aspecto marrento de quem não estava gostando de ser. As pessoas vinham ou passavam sem dar-se conta de nada disso. Pouco lhes interessava a fisionomia agradável ou não daquela manhã. Ele chegou para reclamar, mas com ar voltado para dentro de si mesmo. Preocupado em ter vindo buscar lã e não sair, no final de tudo, tosquiado. A sua demanda, no seu modo de ver, tinha sentido. Já consultara alguém, um amigo habituado a enfrentar disputas. Dissera-lhe que tinha especialidade nessas coisas, porquanto já fora autor e réu em inúmeras contendas. No seu pensar, seu caso era de uma simplicidade muito além da simplicidade franciscana. Refletia convicto: - facilmente seria resolvido. Estaria diante da lei, como fez o personagem de Kafka, e isso bastava. A decisão seria dada de imediata. Lembrando-se de uma máxima de uso corriqueiro de um tio, disse a si mesmo: - Não vou deixar o sangue subir à cabeça. Porém, dizia para si com alguma insistência, não deixaria nada daquilo por conta da sorte, embora o circo, no âmago da disputa, pudesse vir a pegar fogo. Acreditava na rápida solução.
Chegou, sem dar a mínima para o tempo. Ainda que estivesse a chover a cântaros, estaria ali.
Bem no horário de iniciar as atividades, silencioso, mas convicto, entrou na sala ampla, com cadeiras negras espalhadas. Disseram-lhe que teria que fazer a reclamação no guichê de entrada. Voltou e contou o que estava acontecendo, ressaltando que se tratava de um caso simples, sem grandes dificuldades para solução, se bem que - fez questão de acentuar - estava encontrando alguma resistência. Quem o ouvia e anotava o seu simples relato, dava como resposta apenas um econômico "tudo bem".
Mas ele, na simplicidade dos fatos, dizia ao interlocutor do guichê: - Olha, eu tenho um contrato com uma concessionária de serviço, que presta para minha casa esses serviços, cujo pagamento faça mensalmente. Num mês, por engano meu, paguei a mesma cobrança duas vezes, numa diferença de poucos dias. Como vê - ele fazia questão de ressalvar -, é um caso simples para resolver. O anotador do ocorrido cumpria a sua missão. Apenas anotava o fato que estava sendo exposto, sem acrescentar a simplicidade da solução, manifestada pelo reclamante. Era um dia, graças a Deus, com característica andrógina, e sem o calor do mormaço. Perguntou-lhe: - O sr. manteve contato com a prestadora do serviço. Respondeu: - Sim, mantive. E acrescentou: - Venho tratando desse assunto por mais de três meses, desde que percebi o engano do pagamento em duplicidade. Sempre há uma desculpa, e a solução não é dada. Como paguei mais de duzentos reais, e o dinheiro me faz falta, pois sou um assalariado, esse é o motivo pelo qual estou aqui, para que, chamados os responsáveis pela prestadora do serviço, o meu dinheiro seja logo devolvido.
Foi marcada uma audiência para ser realizada em oito dias. Assim, o anotador, de acordo com o que ele chamou de pauta, procurou dar brevidade à solução daquela simples controvérsia. O reclamante tomou de imediato conhecimento do dia e hora em que teria que voltar para encontrar-se com o representante da prestadora do serviço. No dia seguinte, com uma agilidade digna de piloto de fórmula um, a prestadora fora avisada da audiência. Fez-se presente. Alegou uma série de entraves burocráticos e não devolveu o valor do pagamento recebido a mais. Nova audiência foi designada para daí a dois meses, em respeito à pauta - um personagem novo, desconhecido pelo reclamante, que, nessas alturas, já estava pedindo a Deus que tudo aquilo se transformasse numa espécie de purgação de seus pecados, e o dinheiro pudesse ser utilizado para compra de indulgências, prática combatida por Lutero, mas em voga nos dias atuais. Enfim, entrar no céu, ainda em vida, seria a melhor forma de solucionar aquele simples problema.
Mesmo assim, cumpridor de suas obrigações, o reclamante compareceu à audiência, na certeza de que sairia com a devolução do dinheiro que pagou a mais. Qual nada! A prestadora, que recebeu o pagamento em dobro, entre outras coisas, alegou que, tendo sido chamada para o primeiro encontro no prazo exíguo de oito dias, não teve tempo suficiente de apresentar a sua substanciosa defesa, para demonstrar a sua isenção de responsabilidade. Nessas alturas, estava intermediando a disputa um magistrado, vestido a caráter, como manda a regra. E condenou a prestadora a pagar a quantia recebida a mais. Não se conformando com a decisão, a prestadora recorreu. Seis meses passados, veio a solução: de fato, disseram os outros magistrados que examinaram o recurso, não foi respeitado o prazo de dez dias e anularam a decisão. E o reclamante, perplexo, na sua ignorância, perguntou-se a si mesmo: - Precisava esse prazo, para tão pouco. Disseram-lhe: - Sim, repetindo-lhe o sim com uma veemência devastadora. Bem. Pensou, lembrando-se de uma expressão latina aprendida nos bancos ginasiais: - Irei, quer queiram ou não, ad nauseam até o fim, já que o simples não é tão simples quanto está parecendo ser.
Voltou à luta. Anos depois, com a fé de Abraão, teve reconhecido o seu direito de receber o que, por equívoco, pagou em dobro. Lembrou-se: embora não tivesse contado com o ovo dentro da galinha, expusera de forma simples um caso simples, cuja solução o formalismo o tornara tão complicado, ainda bem que não saíra da disputa com as mãos abanando. Ou, no sentido mais vulgar, com uma mão na frente e outra atrás. E ele que tanto crera que, ao invés de obstáculos, fosse lhe dada solução, filosofou com os seus botões: - O mundo não é o que se pensa, é o que é.

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