Aprendi desde cedo a ter respeito por professor. Inicialmente, professora. As mestras que me deram as primeiras lições no Grupo Escolar Sotero dos Reis, em frente à Igreja São Pantaleão, cujas aulas eram no turno da tarde, quando, após o almoço, saímos de casa a pé, com a pesada bolsa nas costas, para chegar a tempo de participar dos folguedos iniciais, entrar na fila, cantar os hinos, sob a batuta das mestras, e ir para a sala de aula, após o toque seletivo do sino. Estabelecia-se uma áurea de respeito entre o discípulo, que ouvia as lições atentamente, e a professora que se desdobrava em explicar os esquemas expostos na lousa (posteriormente quadro-negro; hoje, não mais). Assim, com um período de recreio de 15 minutos, passava-se toda a tarde estudando de língua portuguesa a ciências naturais, para, depois, na saída, num restinho de tempo, jogar uma bolinha, num ligeiro dividido, sujeitos ainda a apanhar uma boa surra em casa, se houvesse algum delator de nossas peripécias. Era um tanto assim. Não é mais. Nem poderia ser. Mas ainda resta essa relação respeitosa, apesar da convivência com a tecnologia, nem sempre agregadora.
Saio desse mundo onírico. Trafego no tempo para chegar até os nossos dias. Não atravesso uma ponte de sonhos, mas de outra realidade. E como se fosse um tresloucado fundista, venço o passado e chego ao presente. O que vejo?
Vejo o professor em sala de aula. Em ambiente bem mais aconchegante do que aquela do Sotero Reis. Vejo o professor de camisa longa, abotoada. Cabelos grisalhos. Com aparência de homem vivido e ideias bem vividas, porém com um vigor no falar, que supera os cabelos brancos que cobrem a sua cabeça. É um mestre. Tem jeito de mestre, postura de mestre e fala de mestre. Eu, escravo do respeito, sedimentado desde os meus primeiros momentos do Grupo Escolar, ouço, com reverência genuflexa, a sua fala, pontuada pelas suas lembranças ao fazer referência a velhos fatos e a antigos e respeitáveis conhecidos. Ora um ministro de Estado aqui, ora um pensador com o qual trocara ideias, ora um ex-presidente a quem assessorou, considerado um perfeito estadista. E voz firme, sem um esgar de gaguejo, parece um tenor que aceita o desafio de cantar uma dessas antigas e imortais óperas, que cativam a partir da emissão da primeira nota do experimentado artista. Desfila sucessivas teorias.
Ousei pensar. Às vezes, a gente pensa. O professor tinha uma missão: fazer crer aos seus embevecidos alunos que o direito, como fato social, na pós-modernidade neoliberal, perdeu o lugar de condutor, passando à condição de conduzido, assim prevalecendo o fato econômico, sintetizado na força da engenharia financeira, ou, numa linguagem mais simplista, do mercado financeiro. E a ideia de soberania, na concepção de o Estado definir os direitos no seu território, não apenas se mitiga, mas desaparece, dando ênfase a outros centros criadores do direito como os organismos multilaterais, a exemplo da OMC. Nessa nova perspectiva, segue o discurso do emérito mestre, a quem o aluno, por hábito cultural, respeita e ouve com atenção, o direito tende a ser produzido mais pelos agentes legislativos em suas várias esferas, desprezando as fontes tradicionais, até porque o tempo da economia é mais dinâmico, mais ágil, enquanto o tempo da jurisdição é lento, desconforme com o processo globalizante, que se constitui num fenômeno multicêntrico, multiforme, multicausal e multicultural. Por isso, as empresas, diga-se, os grupos econômicos, sobretudo os bancos, acentua o iluminado lente, ante olhar cordato dos alunos, evitam o ativismo judicial, que implica criatividade do juiz na aplicação da norma jurídica, e buscam juízes mais velhos, evitando o mais jovens, os quais, segundo seus estudos estratégicos, são mais principiológicos. Exorta mais: ante a plateia de queixo caído, que há nesse mundo de competição um ciclo de destruição criativa, com desprezo por questões éticas ou morais. Nesse ciclo ambivalente, na busca incessante pela produção da riqueza, os executivos recebem bônus para concepção de estratégia de demissão de empregados. E o mundo, em síntese, é visto como um só mercado, e o direito conduzido por esse destrutivo e criativo mercado.
O aluno, inquieto, tentou, do cantinho da sua ingênua ignorância, estabelecer uma troca de ideias. De início, houve tímida resposta. Depois, não mais. As luzes do mestre foram mais intensas, fosforescentes, fixando uma parede de interdição. O monólogo prosseguiu até a exaustão, finalizando com retumbantes aplausos. Veio à mente do aluno um livrinho de Eras Grau, lido e relido muitas vezes. A referida obra é o clássico (não sabe o aluno se ainda é, depois de tudo isso) Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. E o aluno disse, com alguma perplexidade, a si mesmo, talvez numa lembrança de Francis Fukuyama, que decretou o fim da história: o direito chegou ao fim, com ordenação da liberdade e garantia de igualdade. Suspira: já não somos, reflete o aluno, o sal da terra, a irradiar o direito. Seremos ou já somos consequência do ventriloquismo jurídico. Castro Alves, com a sua inquietude condoreira, desperta no seu íntimo, e clama: Deus, ó Deus, onde estás que não respondes?
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