A função jurisdicional é exercida constitucionalmente pelo Poder Judiciário, razão pela qual toda a sua atividade se assenta na credibilidade das suas decisões. O magistrado, ao solucionar o conflito de interesses, o faz tendo como centralidade da ação que julga valores fundamentais que integram o patrimônio material e da personalidade de todos aqueles que buscam a sua manifestação, com a finalidade específica de ter uma solução ditada pelo direito e sopesada axiologicamente pela justiça. Direito e justiça, dois institutos impositivos na reflexão de quem julga. Julgar é sempre um desafio, não sendo bastante para alcançar o seu escopo com apenas aplicação da norma jurídica. A lei é sempre lei, expressando os valores (ou antivalores) de setores majoritários que exercem dominação (econômica, política, religiosa etc.) sobre a sociedade. A lei contém o direito, mas, em si mesma, não é o direito. Extrai-se o direito da regra positivada, interpretando-a para aplicar ao caso concreto, assim construindo a norma de decisão: o verdadeiro direito vivificado, ou, na feliz expressão de Eros Grau (In: Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito), constroi-se a norma que é produto da interpretação, escolhendo no âmbito dos valores as várias possibilidades que o intérprete entende que são corretas. E declara o direito.
O Poder Judiciário é uma das funções de poder, estruturante do Estado de direito. Não pode exercer a sua atividade de prestação jurisdicional de forma meramente decorativa. Tanto que, quando provocado pela parte interessada, terá que se manifestar, havendo ou não norma jurídica (lei) que regule o conflito a ser equacionado pela decisão. Há outras fontes do direito, além da lei. A lei é apenas uma das fontes formais do direito. E as normas jurídicas positivadas tão somente estabelecem pautas de modelos de condutas, que, não obstante, não encampam toda a universalidade. Daí a ideia do direito pressuposto e do direito posto.
Pois bem, dito tudo isso, saiamos dessa linguagem dogmática. Mas antes é preciso que se esclareça que o Poder Judiciário funciona, segundo a doutrina constitucional, a partir de três premissas hermenêuticas essenciais (nesse sentido Anderson Rosa Vaz, In: Constituição Federal interpretada, 531): a) a ficção da igualdade formal entre todos os seres humanos, ou seja, todos somos iguais perante a lei: ricos, pobres e miseráveis; b) a inegabilidade do ponto de partida codificado, ou seja, a estruturação do direito em códigos jurídicos por meio da atividade do Poder Legislativo, querendo isso dizer que o Judiciário não exerce função legislativa, própria de outro poder; e c) redução de todo o direito possível ao direito estatal legislado. Nessa acepção, se assim ficasse restrita a atividade jurisdicional do Poder Judiciário, este seria apenas uma caricatura burguesa de garantia patrimonialista e privativista da classe dominante, uma vez que a igualdade enunciada no art. 5.° da Constituição Federal se constitui num mero formalismo jurídico. E nada mais.
Não destituído de qualquer significado e não sendo meros privilégios, como se tem acentuado aí, de forma descuidada e irresponsável, os membros do Judiciário (em todos os seus níveis: juízes, desembargadores e ministros) têm outorgado pela Carta da República, votada pelos representantes da cidadania brasileira, algumas fundamentais garantias, para que o exercício da jurisdição não sofra restrição de qualquer natureza. Isso quer dizer: de ordem política e, sobretudo, econômica. Essas garantias, concedidas à magistratura, em todo Estado democrático, são voltadas para garantir (aqui vale a redundância) a sociedade, na efetivação do direito.
Quando se veem os grandes grupos econômicos baterem insistentemente no Poder Judiciário, meu caro leitor (ainda que alguns poucos), desconfie. E muito. A mídia conservadora é porta-voz desses inconfessáveis interesses políticos e econômicos. Leia, se tiver um tempinho, pausadamente o art. 93 da Constituição Federal, onde estão catalogados os princípios regenciadores da magistratura, a partir do ingresso na carreira, e deem uma parada no inciso V, que trata do subsídio (em linguagem trivial, do salário) do magistrado. Diz: o subsídio dos juízes será fixado de forma escalonado, a partir do ganho dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Vejam bem: a magistratura brasileira de base está matando cachorro a grito. Mas, vocês dirão: não! Todos ganham bem. A verdade pode ser essa, sem ser bem essa. Eis um tema que requer debate mais amplo. O parágrafo único do art. 95 da CF fixa uma série de vedações aos juízes, entre as quais de exercer outro cargo ou função, salvo uma de magistério. Somado tudo isso, há anos - quatro ou cinco anos - não têm os magistrados reajustamento dos seus subsídios. Esse é quadro (dantesco). O juiz ou juíza tem família, come, dorme em uma casa, paga condomínio, veste-se a caráter, paga energia elétrica, a água, telefone, compra livros, faz assinatura de revistas especializadas, participa de congressos, com os seus recursos, enfim tem que estar atualizado, porque o direito evolui com a sociedade, e o que era antes não será hoje. Além do mais, trabalha à noite, com este escriba, e muitas vezes no fim de semana. Ah!, entre outras coisas, paga gasolina, que está custando o olho da cara. E ainda paga prestações disso e daquilo. Para concluir: uma das garantias da magistratura está prevista no inciso III do art. 95 da Constituição Federal: a irredutibilidade dos subsídios. Toda a magistratura brasileira, à exceção do STF, está com o subsídio reduzido, portanto vivendo sem essa garantia. Enfim, um simples aviso: cuidado para não se precarizar a função jurisdicional, em benefício do poder dominante (econômico e político). Depois, nem as frases da Ministra Cármen Lúcia dão jeito. Só manchete.
*Membro da AML e AIL.
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