Foi assim: já se vão mais de vinte anos; pra ser preciso, vinte e oito anos. No início da noite, saí de Imperatriz. Peguei o ônibus na rodoviária, com a minha mulher Jacirema e meus três filhos, ainda pequenos, o mais velho Aureliano, hoje juiz de Direito. Viajamos a noite toda. Descemos em Santa Maria, no Pará, e pegamos outro ônibus para Vizeu. Chegamos por volta das dez para as onze horas da manhã. Retiramos as bagagens: malas, caixa de livros, máquina de datilografia, ainda encaixotada, e um farnel, contendo de tudo um pouco, que a minha precavida mulher preparou para essa longa e cansativa viagem. A maré estava seca. Não havia embarcação para nos levar para a cidade, onde iniciaria a minha carreira de juiz de Direito. Precisava aguardar que enchesse e, assim, embarcados, conseguiríamos superar um estreito canal que só se passaria se a maré estivesse cheia. Aguardamos, pacientemente. Por volta das dezessete para as dezoito horas, o barco que nos levaria para aquela cidade começou a receber os passageiros. Parecia uma arca de Noé: muita gente, de todo tamanho e peso, malas, gradeados, caixas, animais e uma infinidade de coisas. Enfim, o barco partiu para o seu destino. Escurecia. Acomodamo-nos, procurando dar às crianças o conforto naquela situação, para elas, inusitada. Por volta das dezenove horas, chegamos ao nosso destino. Com a ajuda de um carregador, descemos as bagagens e pedimos a ele que nos levasse a um hotel. Ele respondeu: - Tem nesta rua uma casa que hospeda as pessoas que chegam de viagem. Ótimo, redargui. O carregador na frente, empurrando o carro de mão, e nós o seguindo, fomos à casa a que ele se referia. Ao chegarmos, perguntamos se havia vagas. Não havia. Aí, para não ficar ao relento, me identifiquei não de forma impositiva, mas numa súplica contida para conseguir a acomodação para mim e a família. D. Nazaré do seu Duca foi de extrema bondade. Arranjou-nos um quarto. Ah!, ia esquecendo: a cidade estava às escuras. Lembrava-me dos romances ingleses, saindo de suas páginas aquele tempo denso e, no meio da negritude, destacavam-se apenas os vultos daqueles fantasmas a transitar vestidos com grossas capas para proteger-se dos densos nevoeiros.
Essa foi a minha primeira experiência; outras vieram, vivenciadas durante todos esses anos no exercício da magistratura. O ganho não era curto, porém não era tanto, dava pra se ir levando. Não havia fórum para realizar as audiências. Não havia sequer ajuda de custo para fazer júri. As despesas eram por conta das prefeituras. Não havia telefone. Também o serviço eleitoral tinha participação financeira dessas pobres prefeituras. Tudo era muito difícil. E olha que já peguei um período um pouquinho melhor; outros magistrados, os mais antigos, desbravaram esse Brasil, andando de barco, a pé, a cavalo, e ainda recebendo o pagamento na coletoria estadual. Ser magistrado era uma aventura digna de figurar numa epopeia de Homero, ou ainda ser uma personagem das tragédias de Shakespeare. Como advogado trabalhei, com muitos juízes que exerciam a sua função com muita dignidade, mas com imensas dificuldades.
Conto essa pequena história, porque o Judiciário e juízes brasileiros têm sido alvo de uma campanha que chega às raias da irresponsabilidade. E essa irresponsabilidade, em vista do tratamento dado ao tema, tem o escopo de enfraquecer a magistratura e precarizar o Poder Judiciário naquilo que ele tem de mais importante na sua essência como função de poder: a credibilidade. Mas, ao mesmo tempo, na medida em que alcança esse objetivo, retira do cidadão uma das suas pilastras na luta para assegurar-lhe a efetivação dos seus direitos, quando esse cidadão está em conflito com o mais forte política e economicamente. É o Judiciário, com juízes independentes, em face da preservação de suas garantias constitucionais, que, através de suas decisões soberanas, assegura o direito fundamental de igualdade. A lei é um nada sem a preservação dessas garantias.
Não sei se o povo está cansado do Judiciário. O jornal conservador O Estado de São Paulo, mais conhecido por Estadão, afirma, de forma peremptória, que o povo se cansou do Judiciário. E cita as razões: porque criminaliza a política indistintamente, porque usurpa a competência de outros poderes em nome de uma superioridade moral, porque parece ser composto de cidadãos imune às leis, porque pune os seus membros com polpuda aposentadoria compulsória, porque concede férias de sessenta dias, porque concede aos seus membros auxílios imorais, porque não dá à sociedade as respostas que ela demanda em um prazo razoável, porque boicota projetos essenciais para o País, como o da Previdência, porque gasta mais que os outros poderes. Pode ser verdade, ou tudo seja inverdade. Primeiramente, o Judiciário não criminaliza a política, ele julga políticos que cometem crimes; em segundo lugar, tem punido sem isenção os seus membros. Não é verdade que é culpa exclusiva do Judiciário a demora na prestação Jurisdicional. Um exemplo disso é o novo Código de Processo Civil com normas de procedimento extremamente formais. Quem elaborou? O Legislativo.
Nos tempos difíceis, e ainda o são, não ouvi falar-se das angústias financeiras dos magistrados. Do pouco que ganhavam. Das distantes comarcas, sem luz, sem água, sem escola, sem estradas. Das interferências dos outros poderes, que tinham a força de remover os juízes quando os importunavam. E da absoluta falta de estrutura para trabalhar. Vigente a Constituição de 1988, o Judiciário passou a ser efetivamente poder. Estabeleceu-se o equilíbrio de pesos e contrapesos. Governadores não mais nomeiam juízes, nem removem. Se há erros, e há, corrijam. Mas não vilipendiem a magistratura, precarizando a vida dos juízes. Isso é atentatório ao Estado de Direito.
* Membro da AML e AIL.
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