Antes de entramos em algumas histórias que remontam a um passado bem distante, ou a um passado não tão remoto assim, ressalvo a Lei Maria da Penha criada em homenagem a uma mulher que foi cruelmente trucidada pelo marido. Dirão os mais enfáticos: mas a sociedade mudou. Quem sabe seja esta uma verdade relativa. Os homens continuam a amar as suas mulheres, como se fossem proprietários delas. Brigam. Todo amor, para ser amor verdadeiro, recebe o tempero de uma briguinha sem maiores consequências. Nem sempre o amor acaba. Pode arrefecer, que ninguém é de ferro. Mas não nos iludamos. De briguinha em briguinha, o afastamento pode gerar o desinteresse. Epílogo: cada um sai pra seu lado, carregando as mágoas das briguinhas, e os ressentimentos que impossibilitam a reconciliação. Dolores Duran, cujo nome de nascimento nada tem a ver (Adiléia Silva da Rocha), hoje de pouquíssima audiência nas rádios e televisão, morreu muito cedo aos 29 anos de idade, fulminada por infarto, e entre os seus achados, deixou uma letra sob o título O Negócio é Amar, em que ela fala do amor em suas várias dimensões. Amores à vista, amores a prazo, amor ciumento que só cria caso, os amores do fraco que dão pra beber, amor de raça, ou amor vira-lata, amor com champagne e amor com cachaça. Nessa inspirada letra, Dolores, que amou muito e, até aos 29 anos quando morreu, fez do amor o tema de sua vida, teve muitos amores, pois, como ela mesma diz, quem não tem amor, leva a vida esperando.

Dolores nos deixou grandes e inesquecíveis canções. Estrada do sol (Vamos sair por aí / Sem pensar no que foi que sonhei / Que chorei, que sofri /Pois a nossa manhã já me fez esquecer/ Me dá sua mão, vamos sair pra ver o sol). Ternura antiga (Sim, eu não te ama porque quero / Vivo, e vivo só porque te espero / Ai, esta amargura, esta agonia). Solidão, em que ela clama de modo dramático (Ai a solidão vai acabar comigo). E famosa e repetida A noite de meu bem (Hoje que quero a rosa mais linda que houver / E a primeira estrela que vier / Para enfeitar a noite do meu bem / Hoje eu quero paz de criança dormindo / E o abandono de flores se abrindo / Para enfeitar a noite do bem meu bem / Quero alegria de um barco voltando / Quero ternura de mãos se encontrado). Essa canção de Dolores é clássica. Mas vamos ao O negócio é amor.
Dolores, falecida aos 29 anos de idade, recolheu-se em sua residência e pediu à empregada que não acordasse, queria dormir eternamente. Foi o que ocorreu. Alguns usariam o chavão e diriam, com a ênfase da perda de uma grande artista dessa imensa dimensão criadora: morreu prematuramente. Eu diria: não, não é bem assim, morreu, deixando uma rica história e obras que têm se eternizado no tempo. Fez o que tinha que fazer. Existem pessoas que vivem muito e ninguém percebe a sua passagem. Há uma biografia riquíssima de Dolores, escrita por Rodrigo Faour, com dados bem atualizados e fotografias. Quem tiver interesse de conhecer mais sobre essa intérprete e compositora, deve procurar lê-la, para sentir a força da música popular brasileira, que não se resume a gritos frenéticos ou a meros sons de bate-estacas, disseminados pelos nossos jovens em seus insuportáveis carros de som. São os tempos modernos. Nada contra. Mas que importuna, importuna.
Mas uma passagem de O negócio é amar registra algum momento histórico de uma época. Dolores se refere ao amor nos iates, nos banco de praça. Em seguida, consta essa realidade: Tem homem que briga pela mulher-amada / Tem mulher maluca que atura porrada. Nos anos 50, a palavra “porrada” era considerada palavrão, sendo  inusual em vocabulário erudito. Ainda assim, Dolores faz uso dela, para demonstrar que havia mulheres que, para não perder o amor, se submetia a agressão dos homens. A figura do cafetão, delinquente explorador dos serviços sexuais da mulher, já era comum àquela época. E prevalecia a mulher doméstica, denominada, hoje com um sentido mais depreciativo, de rainha do lar. O homem exercício um poder patriarcal. A história mais antiga  diz que as meninas tinham um tipo de educação diferenciada dos meninos. E os pais corrigiam os filhos com castigos físicos, os mais cruéis. E as mulheres, que dependiam economicamente dos maridos, eram por eles seviciadas, com chibatadas e pancadas, ou, ainda eram proibidas de comer. Dolores denuncia em O negócio é amar essa realidade, porém dando a entender que era uma opção da mulher (maluca) para manter o amor do homem amado.
Lembro que, na minha adolescência, na rua onde morava, havia um casal. Não sei se havia filhos. A mulher era pouco vista na janela. As agressões do marido a ela eram quase que cotidianas. Ela chorando, e ele espancando, e os vizinhos mais próximos ouvindo. O silêncio só era rompido por conversas sigilosas entre um ou outro incomodado.
O tempo mudou. Ainda bem. São quase inexistentes mulheres malucas que aturam porrada. Com essa exceção, o mesmo negócio é amar.