Aureliano Neto*
A bem da verdade, na infância, não tive natais ou Natal. Deitado na rede, estendida entre o quarto e a varanda, por onde se esgueirava a bisa do mar, era acordado pelo pipocar dos foguetes e da algazarra dos vizinhos. Não tinha ideia do que era aquilo. A gritaria, os risos, as alegrias e os foguetes a mim nada diziam. Logo amanhecia, e o dia era como outro qualquer. Na casa do meu avô, essas festividades de fim de ano não faziam parte do calendário daquela casa, que não era triste nem alegre, mas que albergava uma convivência feliz. Também, nem por isso, não havia presentes. Tive uns amigos - eram dois -, que o pai era mecânico de navio e, quando chegava das demoradas viagens, trazia-lhes carrinhos de plástico, sem a sofisticação técnica dos dos dias de hoje, que são dados como presentes natalinos ou nos aniversários e são objeto de farta publicidade nos meios de comunicação.
Nunca sofri o trauma desses momentos transitórios. Sequer os percebi com a veemência da necessidade. Passaram. Apenas passaram. E passaram rapidamente. Contentava-me em jogar chucho, bolinhas de gude, empinar papagaio, jogar com bola de meia. Sim, também brincar de pegador. Os brinquedos, embora desejados, tinham relevância menor. A vida era composta de acontecimentos triviais, que serviam de lastro para que fosse cumprido o mandamento de amarmos uns aos outros como a si mesmos. Pura verdade: amávamo-nos como se todos tivéssemos nascido do mesmo ventre.
Para não dizer que não tive Natal, lembro de um dia que ficou gravado como um acontecimento eterno no meu inconsciente. Era Natal. O que vim saber depois. As crianças, nas portas e nas ruas, exibiam alegres os seus brinquedos: bolas, carrinhos, bonecas, velocípedes. E eu fui visitar a minha tia Morena, casada com tio João. O dia amanheceu com sol, mas, logo, começou a se formar nuvens carregadas e escuras, ameaçando chuva. Cheguei à casa da tia, e o meu tio João foi até o guarda-roupa, que ficava entre a sala e a varanda, e tirou de cima do rústico móvel um carrinho amarelo tipo baratinha, usada nas corridas da época, não sei se já chamadas de fórmula 1. Ou coisa mais ou menos igual. Não lembro. Era um carro, de cor amarela, pequeno, com a figura de um piloto ao volante. Deu-me como presente de papai Noel. Foi o meu primeiro presente de Natal. Recebi-o entusiasmado. Retornei para casa do meu avô, que era coberta de palha. A chuva, que ameaçara, escorria em abundância pela cobertura de pindoba. Fiquei na beirada da casa brincando com o carrinho, que amarrei a um fio e, sentado num tamborete, fazia-o escorregar numa tábua, ora descendo, ora subindo. Passei parte da manhã e da tarde às voltas com o meu presente de Natal. No ano seguinte, fiz o mesmo trajeto e ganhei um roque-roque. Não me entusiasmei. Mesmo assim, não perdi de todo a alegria. O roque-roque foi brincado à exaustão até quebrar a mola. Mas o carrinho ficou enterrado na lembrança. Não o esqueço. Foi o meu primeiro Natal, que fez com que entendesse a sua real existência e compreendesse que os foguetes e os gritos e as algazarras eram o Natal, a acordar-me do meu sono de infância que desejava apenas dormir, sem sequer pensar em papai Noel.
O Natal está bem aí. Fernando Pessoa, num dos poemas sobre o Natal diz "Nasce um Deus. Outros morrem. (...) a Fé vive o sonho do seu culto". Talvez seja isso: nascer, morrer, fé e o sonho do culto ao Filho que nasce. O bom de tudo isso, para os mais entusiastas, não é bem o dia de Natal. Esse é sempre apoteótico. O nascer, além de apoteótico, é mágico. O bom mesmo é a confusão que se faz entre o Natal e o consumo, a propósito de um Natal feliz. Na missa do encerramento da novena, o padre manifestou, e com razão, o seu desalento: - Só se pensa em shopping, dizia ele, e, em seguida, reverberava a sua inquietação: - Lojas e presentes! O nascimento do Filho de Deus, que veio para nos libertar dos pecados, vai ficando para o lado, quietinho no desconforto da manjedoura. Agora sou eu, sem a gravidade do padre: - Precisamos repensar o Natal. Concordam? Nada contra. Fazer o Natal do carrinho sem luxo. Da solidariedade e do amor. E olharmos apenas para Aquele que está a nos ver nas nossas estripulias de compras lá do seu pobre leito de nascimento. Lá está Ele, sendo amorosamente observado pela Mãe, ainda virgem, e o pai, José, o justo, que teve a coragem e a missão profética de receber em casamento a noiva grávida, concebida pelo Espírito Santo. E Ela, na sua entrega de submissão ao Pai, disse: - Aconteça-me segunda as suas palavras. Eis o que se quer: o Natal da entrega. E tudo pode acontecer: o amor, a justiça, a paz, a fraternidade, apesar de sempre aparecer um louco que contraria tudo isso. Esse louco, infelizmente, somos nós. Só há um remédio: fazer com que o Natal nos aconteça.
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