Aureliano Neto*
Meado dos anos 70 e os anos 80, como advogado, fazia longas e cansativas viagens para acompanhar processos ou realizar audiências. Muitas e muitas vezes para Goiás, atual Tocantins, outras para Carolina, Riachão, ainda termo judiciário, e Balsas. Para Balsas, saía da rodoviária de Imperatriz às cinco ou seis horas da manhã, ainda escuro, para chegar por volta das dez ou onze horas da noite. A audiência no dia seguinte. Como sempre, o trajeto, até o destino, era bem doloroso, mas necessário o enfrentamento. O exercício da profissão exigia a presença do advogado na defesa dos direitos do constituinte. A estrada de Estreito até Balsas não era nada boa. De piçarra e bem acidentada, ou de asfalto precário. Ônibus cheio, parando aqui e ali, para descer ou pegar passageiros. Em Porto Franco ou Estreito, tomava um ligeiro e sofrível café da manhã. Bem frugal. A viajada exaustiva exigia paciência de um monge em oração. Não gostava de poltronas localizadas na frente nem atrás. Viajava no meio do ônibus. Menos solavanco. Um pouco mais de quietude, se assim se podem chamar as dificuldades vencidas em todo o caminho, no balanço da trepidação dos interminentes buracos.
Para essas viagens, adotava uma técnica de fuga, para não ser incomodado, nem incomodar o vizinho de lado. Enfiava a cara num livro. E o devorava com sofreguidão até chegar ao destino final. Lembro, certa vez, que li toda uma obra sobre direito das sucessões, incluindo a parte de procedimento. De outra feita, fiz a leitura completa de um livro de Veríssimo, o filho. Marques Rebêlo não escapou. Num desses périplos, conheci Marafa. Essa situação bem solitária (o leitor sofre da patologia da solidão; sem solidão, deve ser lembrado, não há leitura, e muito menos leitor) me veio à lembrança no livro de crônicas de Moacyr Scliar (A Poesia das Coisas Simples), que estou lendo, no qual esse imortal ficcionista (misto de médico e artista das letras) fala sobre os livros. Na crônica A paixão do texto, Scliar acentua que "as pessoas que gostam do livro formam, em todo o mundo, uma grande irmandade, unida em sua silenciosa paixão pela palavra escrita". Diz ser a leitura uma prática solitária e que, no metrô de Nova York, fazem-no para evitar o papo com os estranhos, "mas também porque amam a leitura". É verdade. Vivi esses momentos, nas minhas constantes viagens profissionais. Fazia da leitura um misto de prazer e de solidão, para evitar que pessoas estranhas buscassem em mim um interlocutor de suas banalidades, ou mesmo maledicências. Envolvia-me, de corpo e alma, na leitura. Era uma fuga do convívio esporádico com o desconhecido. Não o faço mais.
Os livros têm sido para mim uma mistura de prazer profissional e estético. Ultimamente leio menos livros técnicos e mais o ficcional e a poesia. Fernando Pessoa é meu companheiro quase que diário. Também Nelson Rodrigues, que fez teatro em tudo que escreveu, até nas crônicas. É só lê "A vida como ela é...". Está tudo lá. Aliás, deve ser dito: Nelson foi um autor confessadamente de pouca leitura. E é ele mesmo quem diz isso: "Li muito pouco. Leitor ideal é o que só lê o mesmo livro todos os dias. Por mais acaciano que pareça, a arte da leitura é a releitura. Reli muitas vezes Crime e castigo." Isso é dito, com a ênfase hiperbólica rodrigueana, em Nelson Rodrigues por ele mesmo.
Mas o mais importante do ler é o pensar. Divagar, refletindo num vai-e-vem. Ninguém escreve nada sem exaustivamente pensar. Nelson Rodrigues dá seu depoimento, ao fazer essa peremptória afirmação: "Levo mais tempo pensando que escrevendo." É a pura verdade. Rachel de Queiroz, que dizia detestar escrever, declarou que o romance Maria Moura ficou na sua cabeça durante 17 anos até quando sentou para escrevê-lo. O baiano Jorge Amado só escrevia quando a história se impunha. "- Escrevo quando me dá vontade. Nunca sei o que vou escrever, apenas sinto que estou com vontade: é o bastante para a criação começar a fluir."
Graciliano Ramos, conhecido pelo uso da escrita seca, precisa e a frase enxuta, declara que "deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam primeiro com uma primeira lavada. Molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra lima e dão mais uma torcida e mais outra. Torcem até não pingar no pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer." Outra verdade: a palavra foi feita para dizer, ou para produzir rumores poéticos. Na obra literária de Graciliano, as palavras dizem, sem falsas metáforas. Apenas dizem. Basta ler Vidas Secas, São Bernardo, Angústia. Esteticamente, tá tudo lá, sem enfeite, mas com o brilho da poesia do artista que sabe usar da palavra. Por isso, Clarice Lispector, ao falar sobre o seu modo de escrever, indaga: "O processo de escrever é difícil? Mas é como chamar de difícil o modo extremamente caprichoso e natural como uma flor é feita." Para outros, como o argentino Ricardo Piglia, a literatura é a forma privada da utopia, Já o mexicano Juan Rulfo, num contraponto a Piglia, enfatiza que escreve para combater a solidão.
Pois é. O livro, o leitor e o escritor. Esse intercâmbio de sentimentos. No livro, as palavras vivem, bailam, murmuram, gritam, choram, lamentam, suplicam, riem, amam, odeiam, nascem e morrem, sem teogania, como José! (e agora, José?), mas despertadas pela leitura solitária, donde se desprendem todas as emoções estetizadas e construídas no fazer literário desses artistas que dão à linguagem escrita os sentidos de nossas utopias. Por isso, para realizar esses sonhos, o tempo poético não é nem ontem, nem hoje, nem amanhã, é apenas quando...
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