Nos tempos antigos, bem antigos, havia aqueles, e eram muitos, que guardavam o sábado. Nada faziam. Só respiravam, porquanto não havia como se livrarem desse ato biológico natural que lhes garantia viver. Sétimo dia: o Nosso Senhor resolveu descansar da labuta de ter criado o mundo, incluindo o homem e, de quebra, da costela, fez nascer a mulher. No poema O dia da criação, o poetinha Vinicius de Moraes, faz referência a esse momento glorioso do advento do ser humano ao mundo: Tudo isso porque o Senhor cismou em não descansar no Sexto Dia e sim no Sétimo / E para não ficar com as mãos abanando / Resolveu fazer o homem à sua imagem e semelhança / Possivelmente, isto é, muito provavelmente / Porque era sábado. O certo é que o Nosso Senhor, após criar o céu e a terra e o mar, e todas as coisas, ainda no sexto dia, sem grandes complicações, do pó criou o homem, soprando nas suas narinas para dar-lhe vida. Não preciso dizer que as complicações vieram depois. Se o Senhor tivesse descansado no sexto dia, tinha livrado o mundo das peripécias do homem e da mulher, e não teria sacrificado Seu Filho para, imolado na cruz, pagar pelos nossos pecados. Mesmo assim, embora tenha deixado dois essenciais mandamentos: amar a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a si mesmo, continuamos a odiar esse mesmo próximo com tanto intensidade, que temos a cara de pau de clamar nas reuniões sociais de faz de conta que o amamos. Mas, baixinho, só pra nós mesmos, dizemos: negro vagabundo! favelado! pobre preguiçoso! mulato metido! bicha sem-vergonha! E mais tantos etecétaros de preconceitos são despejados contra o amado próximo. E só Deus sabe.
O caso que quero contar é antigo, e é do conhecimento de muita gente do mundo cristão. Tanto que Cristo ainda andava entre nós, ensinando-nos a amar ao próximo e perdoar o inimigo. Esta, uma das missões mais difíceis que nos foi recomendada pelo Filho de Deus: perdoar o inimigo e dar a outra face. Com essa pregação de amar ao próximo, Cristo deixava os fariseus em pânico. Simples, eram homens ricos e, em vez de amar ao próximo, espoliavam-no, participando e se locupletando da renda das oferendas do templo. Queriam, assim, a todo custo, pegar Jesus naquilo que eles chamavam de blasfêmia. Sempre quebravam a cara. Conta-se a história do tributo a César. Perguntaram-lhe se era justo pagar tributo a César. Cristo pegou a moeda. Mostrou um lado e o outro, e respondeu: Devolvei a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus. Saíram de mansinho. Quis Jesus lhes dizer: a riqueza aos ricos; a Deus, o amor, a solidariedade, a fé. Em outra ocasião, flagraram os seus discípulos fazendo colheita de milho num sábado, dia sagrado. E aí, conforme a tradição, questionaram-no sobre o desrespeito ao sábado. Em resposta, Jesus fez referência ao Velho Testamento e sabiamente lhes disse: O sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado. E acrescentou: o Filho do Homem é o senhor do sábado.
Entro no tema refletido no título deste texto. Não o quis transformar, primeiramente, numa parábola, e muito menos num estudo de ciência política, com referência específica à concepção do exercício do poder.
Bom. Vivemos numa república federativa em que um dos princípios fundamentais é a dignidade da pessoa humana. Não entender isso é desconhecer a estrutura jurídico-constitucional do Estado brasileiro. Portanto, a dignidade da pessoa humana é o valor-fonte de todos os direitos fundamentais, ressaindo-se como uma qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano. Como consequência desse elemento axiológico de grande relevância, o direito, assim como o Estado, têm que ser pensado e realizado a partir da pessoa humana e não a partir do Estado, ou meramente em face de qualquer governo, que é sempre transitório. Desse modo, o ser humano, o povo, as pessoas que fazem o Brasil, constituem a finalidade precípua do Estado na realização do bem comum. Em resumo: o Estado tem fins, não sendo um fim em si mesmo. No trivial, isso quer dizer o seguinte: o Judiciário existe para, dizendo o direito e fazendo justiça, servir o jurisdicionado, garantindo a igualdade; o Legislativo faz as leis para aperfeiçoar o convívio social, e não para atender a grupos de interesses; e o Executivo deve administrar a coisa pública em beneficio dos interesses da cidadania. Os tributos são pagos para que retornem em termos de melhoria de vida para a sociedade. De outro modo, não há necessidade de existir o Estado. A Constituição que é o fundamento do Estado, não é nem pode ser o que um ministro do STF diz que seja. Nem mesmo é o que o STF diz. Mas decorre de uma série de valores que o constituinte foi, após ampla discussão, amealhar no seio da sociedade.
O governo, que é apenas um dos elementos constitutivos do Estado, mesmo eleito, o que não é o caso no Brasil, não pode fazer o que bem entende, sobretudo quando marginaliza o ser humano, o povo brasileiro, excluindo-o da centralidade dos seus projetos de condução administrativa, fazendo uso de uma espúria maioria parlamentar para, como poder constituinte derivado, fazer reforma na Constituição, ferindo a dignidade do povo brasileiro. Chega um momento, quando esses desacertos são insuportáveis, o homem, ferido na sua dignidade, revolta-se e combate o bom combate, porque nada mais tem a perder. A conclusão óbvia: em que pesem os adeptos de privatizações e de todas as reformas (ou desforras), assim como o sábado foi feito para o homem, do mesmo modo, o Estado foi feito para o homem, e não para alguns grupos econômicos privilegiados se locupletarem.
* Membro da AML e AIL.
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