O dia seguinte?, perguntam-me. É mais ou menos quando, em tempos ainda recentes, se namorava, noivava e casava, e aí vinha o dia seguinte. O dia da nova vida. A vida que, em algumas famílias, nem sempre se iniciava a dois, mas numa mistura fraterna do novo e dos velhos, com os novos sendo aconchegadas num dos quartos da casa de um dos pais. E começava a dia seguinte. Hoje, para muitos felizardos, os tempos são outros. Casam-se, e saem os dois em viagem de lua de mel. O dia seguinte vem depois. E começa na arrumação dos presentes do casamento, agora bem diversificados, constando até de contribuição para o périplo das núpcias. Ah!, quando casei!, final da recepção aos amigos, e nem eram tantos. Estava mais cansado do que remador de Ben-Hur. Estatelei-me numa rede, sem ânimo para mais nada a não ser descansar. Lua de mel em Salinas, conduzido o casal pelo favor do amigo Antero, que nos presenteou com o transporte de uma Variant até o hotel, onde chegamos por volta de umas sete da noite. Era o nosso dia seguinte.
Para muitos, não há dia seguinte. Tudo continua como antes. Mas, no fundo, no fundo, quer se queira ou não, há um dia seguinte, porque há uma nova vida. Quer seja a vida a dois, a três, a quatro, ou a cinco. O dia seguinte nos exige uma tomada de posição. Enfim, passamos a ser responsáveis por alguma coisa, principalmente quando se vem de uma vida de solteiro, daqueles solteiros empedernidos, resistentes ao casamento. E casa-se. E acorda-se no leito conjugal, ou na rede, como ocorreu comigo, com a consciência de que a responsabilidade aumentou. Não são mais apenas os livros, ou discos, ou a roupa usada jogada de qualquer jeito num canto do quarto, ou ainda a chegada, no dia seguinte, depois de uma noite e uma madrugada de muita esbórnia. Esse dia seguinte, descompromissado, passa a ser riscado do calendário. E, a não ser por um deslize, pode ser registrada alguma ocorrência excepcional, com choros e ranger de dentes. O dia seguinte é um compromisso com a nova vida, nem sempre seguido por muitos, por isso mesmo, os desencontros. O dia seguinte pode ser um duradouro encontro, ou um fulminante desencontro, com a célebre incerteza do desengano: - Ora, eu não pensava que fosse assim. O que muito prezo é a minha liberdade, repete o inconformado. Ou ainda: o amor que nos uniu não é tão infinito; só o é enquanto dure. E aí se entra naquilo, que chamam de rotina, que Otto Lara Resende, em uma de suas crônicas, publicada no excelente livro Bom dia para nascer, chama de casamento temporário, cujo amor se esvai na finitude dos cumprimentos efêmeros. E é o mesmo Otto que nos diz que "a vida é um mundo de possibilidades. Atração e repulsa, afinidades. Convergência e divergência". Que representam o acervo das contradições do dia seguinte. Não há como fugir dessas intempéries do dia seguinte.
Mas... o dia seguinte que me perguntam, não é bem o dia seguinte do meu casamento. Afinal, já há algum tempo que tenho vivido o dia seguinte com Jacirema. Este ano, completamos quarenta anos do dia seguinte. Dia 18 de novembro de 1977, saía eu, em Imperatriz, da casa do meu amigo e compadre Adalpe, ajudado pela comadre Teresa, que dava o retoque de estilo no terno, que mandara fazer pelo alfaiate Almeida, especialmente para ser usado naquela importante data, que marcaria uma mudança de vida: logo se iniciava o meu dia seguinte, ou melhor, o nosso dia seguinte. Pontualmente, ou quase pontualmente, entrávamos na Igreja Santa Teresa e sacramentávamos perante o altar o sim. Muitas alegrias, e muitas mesmo, com algumas turbulências, que ninguém é de ferro, passaram. E continuamos a viver o dia seguinte. O filho mais velho, o Aureliano, já vive o dia seguinte; e, no dia 12 de agosto, levamos ao altar da Igreja da Sé a filha do meio, Bernadete Maria, para sacramentar o dia seguinte.
Pois é, tendo tomado posse na Academia Maranhense de Letras, na cadeira nº 9, patroneada por Gonçalves Dias, no dia seguinte participava, perante o monumento do grande indianista, da homenagem que lhe fora prestada pelos acadêmicos, sob a presidência do confrade Benedito Buzar. Sebastião Duarte perguntou-me, com a ênfase que o caracteriza: - E aí, como está o dia seguinte? Apenas tartamudeei. Até porque esse dia seguinte se posterga na memória da Academia, que não é apenas uma casa de acolhimento, mas um cenáculo a exigir de mim uma responsabilidade acadêmica, a sempre me questionar: por que estou aqui e por que escrevo. Para ser feliz, por vaidade, por compulsão, como uma espécie de catarse de todas as sofrências, para expor as dores da vida, como meio de dialogar com o outro, ou para encontrar-me comigo mesmo? Não há uma resposta única. Autran Dourado, grande escritor mineiro, que gostava de falar das suas obras, dizia que, ao publicar o seu primeiro romance, não gostou do resultado estético. Enfurnou-se numa biblioteca durante cinco anos para se preparar para ser escritor. Leu todos os clássicos. E retornou a sua atividade consagrando-se como um dos melhores escritores brasileiros, produzindo trabalhos como Risco do bordado, Ópera dos mortos e Uma vida em segredo. Citado por Frei Beto, em o Ofício de escrever, Dostoievski afirmava que escrever é expor as entranhas. Rachel de Queiroz, autora de O quinze, costumava dizer que escrever é um ato de sofrimento. Para mim, nesses dias seguintes, é um ato de profunda responsabilidade.
Membro da AML e AIL
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