Aureliano Neto*
Era tão certo como o nascer e o pôr do sol. Ela chegava pelo meio da tarde. Trazia à mão a tigela esmaltada, de cor branca. Um branco alabastrino, como diziam os românticos, no afã de intensificar a pureza das coisas. Quase um lugar-comum. Ainda assim, procurei a palavra no dicionário e a encontrei. Fiquei encantado e com a certeza de que o dicionário é, de fato, o túmulo dos significados. Pois bem. A tigela, com bordas pretas, pequena e de aparência frágil, assemelhava-se à dona, idosa, ou mesmo velha, magra, usando um vestido que ia quase ao tornozelo. Dela emanava uma elegância contida. Não era uma elegância da roupa simples, mas que refulgia da sua pessoa. O vestido era de um tecido leve, apropriado para a tarde. O sol quente. Aquela senhora vinha para o café, que era torrado, coado e servido pelas três horas da tarde. Antes, na torração, o cheiro transitava da cozinha, atravessando todo o corredor, a ampla varanda da casa, para chegar até a porta da rua. Exalava o cheiro intenso do café, torrado e passado, para ser logo servido, ou quem o quisesse, dele se servir, despejando-o do grande bule de estanho verde. Café forte. Grosso mesmo. Tomado pelas crianças, com um punhado de farinha dágua. Pão!, era luxo, só para algumas famílias que podiam dele desfrutar. Uns poucos mais aquinhoados. Por essas horas, como a adivinhar, passava o vendedor de cuscuz, carregando a tiracolo o balaio de vime. Algumas cadeiras já estavam na porta. As pessoas gostavam de conversar. O café era servido, ainda fumegando. Sorvido em pequenos goles, às vezes repetidos por aqueles que não se contentavam apenas com uma xícara. A rubiácea, que foi trazida de tão longe para nossas terras, aqui plantada deu em grande quantidade, até mesmo para exportar. E nos fez e ainda faz viver o ritual do café.
Essas relembranças trazem-me a sonoridade do canto infantil: - café com pão, bolacha, não. Parece-me que a intenção era, além de entoar o dito popular, na repetição cantada do refrão, enaltecer o hábito do cotidiano de uma gente, fadada à simplicidade de ter o café e o pão. Café com pão, bolacha, não. Os garotos, meninos ou meninas, gostavam de cantarolar, como se estivessem a repetir o zoar do trajeto de um trem na sua passagem ligeira e inconsequente. Muitas vezes, dei por mim, repetindo esse refrão: - café com pão, bolacha, não. E voltava-me a imagem da velha e da tigela de estanho, esmaltada. Vó Gertrudes. Assim a chamávamos com devotado respeito à idade. Porém, uma curiosidade que despontava do seu hábito do café da tarde: tomava-o amargo. Sim. Enquanto todos nós temperávamos a rubiácea com boas colheradas de açúcar, ou de farelo de rapadura, vó Gertrudes saboreava cada gole sem adoçar. Isso para nós não tinha uma explicação plausível, que justificasse aquele inusitado hábito: tomar café sem açúcar. Ora bolas, coisa estranha. Para mim, até hoje, muito estranha, em que pese a diabetes exigir mudança de hábito e mesmo de comportamento.
O café da tarde era tomado com muita conversa. Vó Gertrudes, sacudindo a sua tigela de estanho, branca e de beirada preta, falava das coisas do Ceará, terra donde viera, também berço de nascimento do meu avó. Os cearenses se entendiam. Conversavam e conversavam, sempre entremeando o diálogo com as bênçãos dirigidas ao Maranhão, pátria amada que os acolhera e os possibilitara criar a família, bem numerosa. E diziam: cearense é bicho danado, vence todas as dificuldades, quando é trabalhador é trabalhador, quando é preguiçoso nem o diabo aguenta. Esse estribilho era repetido à exaustão. E levantavam as mãos para os céus, agradecendo todas as dádivas divinas.
O cheiro do café, quando passado em casa, faz-me voltar à velha Gertrudes, a vó do Ceará. A sua figura se ressai no tempo, como se fosse um quadro de Portinari, a mostrar, de forma vívida, os janelões da casa que clareavam o corredor, que dava acesso ao saguão, onde ficava o tonel dágua para o banho diário e outras necessidades. Do corredor à ampla cozinha, tendo ao centro a mesa espaçosa, rodeada de tamboretes, o café era ali mesmo servido e bebido, ficando o bule ao pé da trempe, para aquecer, dando-se vazão às conversas. Pela rua, passava o vendedor de cuscuz, a pontuar aos gritos as qualidades da iguaria. O cuscuz era vendido e degustado na folha da bananeira. Com café, tirante o punhado de farinha dágua, era de arrepiar.
Pois é. Café com pão, bolacha, não. Essa onomatopeia do zoar do trem, repetida pelas crianças nos seus folguedos, enfatiza o entendimento de que o café e o pão, embora as vezes divorciados, sempre viveram um casamento eterno. Na casa dos meus pais, a minha mãe, vivendo a dureza do envelhecimento e a dúvida da vida, pois está a padecer de senilidade, pouco conhecendo os filhos, tinha, como Cristo, a missão de multiplicar os pães, para os dez e depois treze filhos. Eu, este escriba, o mais velho. O café e o cheiro que dele emanava, vinham ungidos pelo amor descompromissado do eterno servir. Ainda sinto o cheiro daquele café tão amargo no fazer e tão doce no beber, que insiste em me acompanhar por toda uma vida.
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