Às vezes, a gente amanhece machadiano. E como é difícil, e mesmo impossível, amanhecer machadiano! Me vem à lembrança a célebre introdução de Missa do Galo: “Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal. Havendo ajustado com um vizinho irmos à missa do galo, preferi não dormir; combinei que eu iria acordá-lo à meia-noite.” E, a partir dessa dúvida inicial, tem início uma narrativa da conversa entre Nogueira e a mulher do escrivão Meneses, Conceição, em que os pequenos gestos e a troca de olhares espertos, ou o simples cruzar de pernas, ou ainda a visão da metade dos braços desnudos e, de furtivo, do bico das chinelas, que o roupão comprido cobriu-as logo, permeiam o cepticismo sutil do discurso do Bruxo do Cosme Velho. Dá meia-noite e vizinho bate na janela e brada chamando o absorto e embevecido Nogueira: “Missa do galo! Missa do galo!” E tudo se desmancha. Conceição, vestida num roupão, saiu pisando mansinho, para interpor-se durante a Santa Missa entre Nogueira e o padre, deixando apenas a dúvida do acontecido por conta dos dezessete anos do seu Nogueira.

Também nunca entendi – isso muito antes de ler Machado de Assis – as constantes manifestações daquela senhora, que morava vizinha da casa onde eu morava. A casa, uma porta e janela, alugada, ficava quase em frente à donde eu morava. Tinha eu ou quinze ou dezesseis anos. Não havia televisão. Era só rádio. Ela, de uns vinte e tantos anos. Era casada, sem filhos, com um homem que não oferecia segurança no trato. E ainda tinha fama de zangado. Mas tudo ficou nas quase despercebidas insinuações iguais às da Conceição, mulher do escrivão Meneses, na conversação que manteve com o seu Nogueira até o anúncio da missa do galo. Como no conto, nada passou da meia-noite. O tempo foi que passou, como passou a meia-noite, e essa senhora, como por encanto, desapareceu, ficando apenas os elogios impertinentes aos belos olhos azuis, como ela bradava, sem o cuidado do cochicho, a um jovem de uns quinze ou dezesseis anos. Nunca pude entender por que recebia tratamento tão piedoso de uma mulher tão mulher, e eu tão menino, para uma época, e ainda tão menino.
O tempo tem passado e eu ainda nunca pude entender algumas coisas de nosso tempo. O que fora antes uma inocente conversa entre Nogueira e Conceição, talvez sem qualquer significado, a não ser o passar do tempo e chegar à meia-noite e tudo acabar-se com a ida à missa do galo, fora, do mesmo modo, a minha impossibilidade de entender as manifestações mais piedosas que voluptuosas da vizinha de frente da minha casa, a dar-me um certo temor de chegar aos umbrais da janela, ponto de observação de um tempo onde se via a vida passar e se conhecia os segredos mais recônditos de toda uma rua. Quem era quem ou quem não era nada, era espreitada a sua história da janela ou pelas suas frestas.
Por isso, custa-me entender, vivendo em pleno século XXI, e já tendo ultrapassado as fronteiras dos sessenta, que está para nascer numa clínica no bairro das Laranjeiras, no Rio de Janeiro, um bebê, filho de dois homens. Pois é, sem preconceito, aviso aos mais afoitos: filho de dois homens?! Não que os dois gerassem entre si. A medicina, com seus avanços científicos, ainda não chegou a tanto. A criança esperada pelos pais está sendo gerada pela mãe (mãe, mãe mesmo) de um dos pais. Explicando melhor para que se possa entender o que eu ainda não entendi: a mãe da criança foi inseminada por um dos pais, que não é o seu filho. Conclusão dessa mistura biológica: a mãe da criança será, ao mesmo tempo, mãe e avó. 
Para resolver toda essa confusão filial, maternal e paternal, os maridos-pais contrataram um advogado para cuidar do registro do futuro rebento que está para nascer, ou que já deve ter nascido. Não sei. Sei que estava em fase de gestação. Mas os pais da criança querem que o registro conste apenas eles como pais. É mais uma boa confusão para ser resolvida pelo Poder Judiciário, brasileiro, em decorrência do surgimento nessa nossa pós-modernidade das novas famílias, dessa vez agregando, ao mesmo tempo, mãe e avó, numa dessas grandes confusões que tenho dificuldade de entender até onde chegaremos. Ou se não chegaremos a lugar nenhum. Ou se chegaremos a todos os lugares. Ainda, confesso, não pude entender. Volto aos meus quinze ou dezesseis anos, quando as provocações piedosas daquela mulher me faziam recuar ante a sua insistência de ver-me como alguém que representasse o narciso das suas insinuações, que talvez não fossem tão voluptuosas como são as dos dias de hoje. Como Machado, nunca pude entender. Nem sei se entenderei. Mas sei que terei que entender. Ainda assim, sigo os versos do Cântico Negro, de José Régio, poeta português: “Não, não vou por aí! Só vou por onde / Me levam meus próprios passos... (...) / Prefiro escorregar nos becos lamacentos, / Redemoinhar aos ventos, / Como farrapos, arrastar os pés sangrentos, / A ir por aí...”