Aureliano Neto*

- Senhor, como é o teu nome? - perguntou-lhe a juíza, envolta na toga de cor escura, circunspecta, dando certa gravidade à pergunta, ao iniciar a audiência, para colher o depoimento daquele homem, que, a propósito do momento solene, não conseguia se livrar da fisionomia sisuda, numa demonstração de que estava naquela sala, com ar retraído, não porque quisera ali estar, mas porque fora por intimado por uma pessoa que se identificara como oficial de justiça. Ao receber o papel com o timbre, assaltou-lhe inúmeras dúvidas, chegando a perguntar a si mesmo qual o crime de que estava sendo acusado e quem fora a suposta vítima. Pensava e pensava, e nada. Não chegara a lugar nenhum. O jeito mesmo era atender àquele chamado, porque, por acaso, lera uma enfática observação: caso não comparecesse, seria conduzido debaixo de vara. Vara!, ruminava para dentro de si. Por via das dúvidas, estaria lá bem antes da hora marcada. Assim o fez.
Chegando a tempo e à hora, foi-lhe feita a pergunta: - Senhor, como é o teu nome? Respondeu sem esboçar qualquer receio, já que tomara conhecimento de que ali fora chamado como testemunha de um caso ocorrido que lhe vinha à mente algumas lembranças entrecortadas, cheias de falhas, cujos espaços procurava construir fazendo ligeiras memorizações, recapitulando passagens que ficaram soterradas pelo tempo. Assim, respondeu: - Messias da Silva. Porém ficou na dúvida se a sua identidade oficial da RG não conflitaria com o nome com o qual era conhecido na localidade. Pensou: - Com resolver essa incômoda situação?! Chamou a sua excelência para um lado e pediu permissão para ter com ela uma rápida conversa de pé de ouvido, sem que isso representasse desrespeito. Ela concordou. Então, lhe disse: - Meu nome é Messias da Silva. Assim fui registrado. Mas, doutora, todo mundo me chama de Bosta Nágua. A magistrada abriu um leve sorriso e disse-lhe de supetão: - Mas tu nem afundas, rapaz!
Concluída a audiência, Bosta Nágua, ou Messias, saiu com a certeza de que não haveria dúvida de que a sua verdadeira identidade não sofrera nenhum arranhão, tendo sido oficialmente preservada. Assim, Bosta Nágua ficou nos anais daquela audiência, enquanto Messias da Silva no registro obrigatório, embora o nome com o qual era conhecido representasse a sua identidade social, como de fato os parentes, os amigos e até os inimigos o tratavam.
Deixemos Bosta Nágua, na sua luta cotidiana, para fazer valer o nome que o consagrou. Messias não era a salvação nem dele, nem dos outros. E da Silva, um apêndice tão comum, que não valia a pena fazer companhia a Messias. Já Bosta Nágua lhe trazia o conforto de se sentir melhor. Não era mais a alcunha brejeira, era ele próprio o Bosta Nágua.
De outra feita, estava a nossa magistrada em outra audiência. De cabeça baixa, examinando o volumoso processo, não percebeu a entrada das partes. Olhou para um lado e para outro e viu duas mulheres. Traços fisionômicos delicados, sem quaisquer exageros cosméticos. Deu uma vista dolhos na petição. Autor: José de Ribamar. Parte reclamada: Maria das Dores. De imediato, acendeu-lhe a dúvida atroz da identidade das partes. José de Ribamar? Como? Ali do seu lado estava uma mulher, sem tirar nem botar. Perguntou: - O senhor é José de Ribamar? Com a voz bem feminina, respondeu-lhe: - Sim, sou eu mesma. - Como assim?!, insistiu a juíza. A resposta também foi imediata: - Meu amor, seis meses eu sou homem, e seis meses eu sou mulher. Estou nos seis meses do feminino. Por esse tempo, sou chamada de Vanda. Ao ouvir essa explicação, a magistrada não titubeou. Fez a qualificação da parte. Nome: José de Ribamar, também nesses seis meses, conhecido por Vanda.
Bosta Nágua e Vanda, dos seis meses, estão por aí, identificando-se pelo apelido como são conhecidos socialmente. Aceitam o rótulo, sem criar caso. Dizem: o pior apelido é o que pega, por ser rejeitado. O que é aceito se incorpora à pessoa como casca numa fruta que resguarda o saboroso miolo. Abacaxi só é abacaxi porque é abacaxi, com uma casca complicadíssima, porém muito saboroso, dependendo do abacaxi. O de Turiaçu é uma delícia.
Deixemos o abacaxi de lado e vamos ao que interessa. Não muito tempo atrás, mas já passado alguns anos, que ninguém é de ferro, fui professor de um grupo de alunos no Rio de Janeiro. Entre esses alunos, havia uma aluna, cujo nome - assim todos a chamavam -, era Mundica. Cearense. Não deixava nenhuma dúvida, a partir do nome, que era cearense. O nome dela de registro era Raimunda. Se a chamássemos Raimunda, nem se virava. Só Mundica. Para todos os efeitos, era Mundica. Acostumou-se de tal modo a ser Mundica, que silenciava ao ser chamada de Raimunda. Era o seu nome social. Lembrei-me de minha tia Ernestina. Nunca foi Ernestina a não ser no nome. O seu nome de registro é Iolanda. Os íntimos têm certeza que, para todos os efeitos, Iolanda nunca foi Ernestina. Ernestina é o heterônimo de uma Iolanda que nunca existiu.
Por esses dias, soube que o Congresso Nacional aprovou projeto de lei que dá direito às pessoas alterarem o registro de nascimento, para inclusão do nome social. É uma boa notícia. Não sei se tão boa para Bosta Nágua, como o é para Vanda, Mundica e Ernestina. Dizem que o projeto, em fase de sanção, estabelece como condição ser a pessoa transexual. Vanda, então, pode fazer jus, quem sabe, se lhe for permitido concretizar as suas fantasias, a dois registros. Seis meses, com o nome de José de Ribamar; os outros seis, o de Vanda. Ou, ainda, para realizar todos os seus sonhos: José Vanda de Ribamar. Assim, resolvem-se todos os problemas de José e de Vanda: o encontro de dois numa só pessoa.

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