PAZ

Esta janela aberta
As cadeiras em roda por volta da mesa
A luz da lâmpada na moringa
Duas meninas que conversam longe...
Paz!
O telefone que descansa
As cortinas azuis que nem balançam

Mas sobre uma cadeira alguém está chorando.
Paz!
(de Manoel de Barros, do livro de poemas Face Imóvel)

Não sei por que, aproximando-se o Natal, esse poema Paz, de Manoel de Barros, me despertou uma contraditória melancolia de felicidade. Seja porque o poeta do Pantanal nos deixou, partindo, em 13 de maio de 2014, para o seu encantamento definitivo e para viver a paz desses versos que brotaram do fundo dos sentimentos controvertidos que servem de fundo a uma paz ambivalente que se deixa inquietar pelo choro de alguém sobre uma cadeira. A janela aberta, as cadeiras em ordem, as duas meninas que conversam, o telefone que descansa, mas alguém que chora sobre uma cadeira. Voltei, sem que o quisesse, a minha casa e rua, com janelas abertas e cadeiras, ora volta da mesa, ora nas portas no cair da tarde para as conversas rotineiras. Não havia telefone. O seu trinado não incomodava. As pessoas apenas se falavam. Mas havia as cortinas que esvoaçavam pela vontade do vento forte, ou ficavam presas, enlaçadas e quietas; nem balançavam. Era a paz de uma vida, em que o presente de Natal, quando tinha, era concretizado numa lembrança efêmera, de pouco valor econômico, porém de muita afetividade. As ruas perdiam a quietude da paz. Era o jogo da bola presenteada, que uns, cheios de felicidade, ganhavam, e muitos se aproveitavam para partilhar o lazer lúdico do dia seguinte.
Havia sempre um alguém desafortunado, sobre uma cadeira rústica, ou de balanço, que agradecia, num ligeiro sinal da cruz, a sua paz. Não por não ter sido lembrado pelo Papai Noel, muito pouco conhecido para alguns, ou para muitos. O presente mais importante, que lembra a paz desse poema de Manoel de Barros, era dado com alegria ou com tristeza - os sentimentos estavam embutidos no sorriso contido ou na dor não revelada - e clamava-se ao alvorecer do dia de Natal. - Feliz Natal! Estava consolidado o supremo desejo em forma de oração. Porque o Natal tinha esse sentido da oração repetida com um ato de constrição. Esse refrão secular é mais que um desejo. É uma vontade de eternizar no outro a felicidade do nascimento de todas as virtudes. É uma prece. É um pedido ao Pai para que se renasça para vida e para paz. A paz do poeta. Da janela aberta. Das cadeiras em ordem e em volta da mesa. De todos a conversarem não mais sobre negócios, lucros ou dividendos, ou do parcelamento das dívidas, do salário a receber, da conta a pagar, dos defeitos do amigo ou do inimigo, mas apenas a conversarem, com sequiosa avidez pela vida, do amor e de todas as possibilidades de que é possível se renascer nesse simples e cristão desejo de feliz Natal!
Esse poema Paz, de Manoel de Barros, me levou à grande poetisa Cora Coralina, que, em sua Poesia de Natal, nos desafia a praticar o amor: - Enfeite a árvore de sua vida / com guirlandas de gratidão! / Coloque no coração laços de cetim de rosa, / amarelo, azul, carmim, / Decore seu olhar com luzes brilhantes / estendendo as cores em seu semblante / Em sua lista de presentes / em cada caixinha embrulhe / um pedacinho de amor, / carinho, / ternura, / reconciliação, / perdão! / Tem presente de montão / no estoque do seu coração / e não custa um tostão! / A hora é agora! Enfeite seu interior! / Sejas diferente! / Sejas reluzente!
O Natal é muito de tudo disso. Congrega sentimentos. Ambivalências. Da presença e da ausência. Da presença em torno da paz da mesa. E saudade da ausência daqueles que amamos e ali não mais se encontram. Saudade dos nossos fantasmas daquela mesa. Dos sorrisos daquela mesa. Da sisudez daquela mesa, com outras presenças. Dos abraços daquela mesa. A mesa que não mais se repete. Mas é o mesmo Manoel de Barros que nos diz num dos seus poemas: "Se a gente jogar uma pedra no vento / Ele nem olha para trás. Não é bom olhar para trás." O poeta que falava com o vento e conversava com as plantas e os animais, nos pergunta: - Por que olhar para trás? É que o Natal, poeta, muitas vezes nos provoca esse olhar de saudade. E lá está aquela casa e aquela mesa. As cadeiras em sua volta. E todos, contidos ou efusivamente, em prece e nos abraços a exortarem: - Feliz Natal! É o que desejo a todos, numa oração ao Pai, em devoção ao Filho, que o anjo mandou que se chamasse Jesus. Desejo a paz da janela aberta, do telefone mudo, da divida paga, a paz da alegria e da saúde, a paz do amor, a paz feliz de um Natal feliz!

* Membro da AML e AIL