PAZ
Esta janela aberta
As cadeiras em roda por volta da mesa
A luz da lâmpada na moringa
Duas meninas que conversam longe...

Paz!
O telefone que descansa
As cortinas azuis que nem balançam

Mas sobre uma cadeira alguém está chorando.
Paz!
(de Manoel de Barros, do livro de poemas Face Imóvel)

Não sei por que, aproximando-se o Natal, esse poema de Manoel de Barros, Paz, me despertou uma melancólica atenção. Talvez não seja porque o poeta do Pantanal nos tenha deixado recentemente, partindo para viver a paz desse canto, poetizado no âmago dos controvertidos sentimentos que perfazem esses deliciosos versos. A janela aberta, as cadeiras em ordem, as duas meninas que conversam, o telefone que descansa, mas alguém sobre a cadeira que chora. Voltei, sem que quisesse fazê-lo, à minha rua, com janelas abertas e cadeiras ora em volta da mesa, ora nas portas, no cair da tarde, para trivialidade das conversas rotineiras. Mas não havia telefone. O seu tilintar insistente não nos importunava. Mas havia as cortinas que esvoaçavam, sacudindo-se, pela força do vento forte, ou que estavam presas, quietas, nem balançavam. Era a paz de uma vida, em que o presente de Natal, quando tinha, era traduzido numa lembrança efêmera e de pouco valor econômico, porém de muita estimação. As ruas perdiam a quietude da paz. Era o jogo de bola, o presente dado, que um dos meninos, cheio de felicidade, ganhara, e outros, felizes pela felicidade do amigo, se aproveitavam para partilhar no jogo de rua.
Havia sempre um alguém, desafortunado, sobre uma cadeira rústica, ou de balanço, que chorava a sua paz. Não por não ter sido lembrado pelo Papai Noel da época, muito pouco conhecido para alguns, ou mesmo para uma infinitude de desafortunados. O presente mais importante, que lembra a paz desse poema de Manoel de Barros, era dado com alegria ou com certo ar de tristeza – os sentimentos estavam embutidos no sorriso contido ou na dor não revelada – e dizia-se no alvorecer do dia de Natal. – Feliz Natal! Pronto. Estava consolidado o desejo em forma de oração. Porque o Natal tinha esse sentido supremo de oração. A frase secular é mais que um desejo. É uma vontade extrema de ver o outro feliz. É uma prece. É um pedido ao Pai para que se renasça para vida e para paz. A paz do poeta. Da janela aberta. Das cadeiras em ordem e em volta da mesa. De todos a conversarem não mais sobre negócios, lucros ou dividendos, ou do parcelamento das dívidas, do salário a receber, da conta a pagar, dos defeitos do amigo ou do inimigo, mas todos a conversarem, com sequiosa avidez pela vida, na realização do amor e de todas as possibilidades de que é possível se renascer nessa simplicidade de desejar Feliz Natal!
Esse poema de Paz, de Manoel de Barros, ainda me trouxe a lembrança a canção de Sérgio Bitencourt, Naquela Mesa, que foi feita em homenagem a seu pai Jacob do Bandolim, grande ser humano e excepcional músico, que, ao lado de Elizete Cardoso, a Divina, fez uma apresentação inesquecível no Teatro João Caetano, no Rio, até hoje registrada em disco e CD. Um dos versos de Naquela Mesa traz o lamento da perda: naquela mesa está faltando ele, e a saudade dele está doendo em mim. O Natal é um tanto disso. Congrega sentimentos ambivalentes. Da presença e da ausência. Da presença em torno da paz da mesa. E saudade da ausência daqueles que amamos e ali não mais se estão. Saudade daquela mesa. Dos sorrisos daquela mesa. Da sisudez daquela mesa. Dos abraços daquela mesa. Das ausências daquela mesa. A mesa que não mais se repete. Mas, ainda, é o mesmo Manoel de Barros que nos diz num dos seus poemas: “Se a gente jogar uma pedra no vento / Ele nem olha para trás.” Não é bom olhar para trás. Podemos transformar os nossos sentimentos em estátua. O vento não olha para trás. Não é verdade? Por que a gente vai olhar para trás? É que o Natal de hoje muitas vezes nos provoca a olhar para trás. E lá está aquela mesa. As cadeiras em volta da mesa. E todos, contidos ou efusivamente, em prece e nos abraços a nos exortarem: – Feliz Natal! Embora com saudade daquela mesa, com saudade deles (das cadeiras vazias), que não mais lá estão quietos ou a extravasar todos os sentimentos de alegria, desejo a todos a paz da janela aberta, do telefone mudo, da dívida paga, da saúde liberta dos planos de saúde, a paz do amor, enfim, a paz de um Feliz Natal!