Entrei o ano de 2020 com a alma tiritando e o coração batucando. Alegria. Tristeza. Angústia. Dúvida. Não sei. É mais um ano, com muitos votos de sucesso, felicidade, realizações, e o escambao. Veio-me Cartola, o nosso grande poeta da música popular da nossa pátria amada, como uma espécie de tábua de salvação. Socorre-me este mestre da canção e da poesia com o magnífico poema de As rosas não falam: Bate outra vez / Com esperança o meu coração / Pois já vai terminando o verão, enfim / Volto ao jardim / Com a certeza que devo chorar / Pois bem sei que não queres voltar para mim / Queixo-me às rosas, que bobagem / As rosas não falam / Simplesmente as rosas exalam / O perfume que roubam de ti. 
Começar este de 2020, um ano de incertezas, com as desastrosas ações do arrogante e iletrado Trump, que, na sua sapiência tacanha, resolveu apagar fogo com gasolina, e mais o nosso capitão, que tem por hábito tirar dos pobres para manter os ricos mais ricos, só mesmo recorrendo a nossa tão desprezada cultura popular, representada, ainda bem, por artistas eternos, pela sua arte, como Cartola.
Desejo. E sempre é possível desejar. Que não venha mais ler conhecimento de fatos como o que li no jornal Diário Gaúcho, edição de 27/10/2019, p. 7, que noticiava que a única funcionária da biblioteca pública do bairro Jardim Sabará se aposentou no fim de setembro daquele ano. Até aí nada de anormal. Mas, o problema, o cruel e insolúvel problema? Como manter a biblioteca em funcionamento. Como? Eis a grande e difícil questão a ser respondida pelos administradores públicos. 
Para melhor entender a preocupação que atormenta boa parte dos nossos homens públicos. Nem sempre tão públicos. Na maioria das vezes mais privados do que públicos. Transcrevo algumas passagens da notícia: “Um sonho que nasceu do empenho da comunidade, em 1976, há anos sobrevive com dificuldades e falta de investimentos. No entanto, um novo e importante capítulo na história da Biblioteca Pública Leopoldo Boeck, no bairro Jardim Sabará, na Capital, começa a se desenhar a partir de agora. Nesta sexta-feira, a única funcionária da biblioteca se aposentou e nenhum substituto foi anunciado. Preocupada, a comunidade buscou respostas da Secretaria Estadual de Cultura e, até agora, não tem certeza de como e se a biblioteca será mantida.”
Uma dúvida cruel: uma biblioteca, de 1976, sem investimentos, apenas uma servidora para atender à comunidade, a servidora se aposenta, e aí a solução possivelmente é fechar. Reitero, com absoluta veemência, os meus inúteis desejos de que, em 2020, Deus, na sua onipotência, me faça ser privado de ler notícia semelhante a essa. Mas, para aonde vamos, então? Soube que estão construindo em São Paulo, ou em alguns estados brasileiros, escolas militares. Aí me fiz esta pergunta universal, mas que talvez sirva para nossa pátria amada: pra quê? Veio-me a tenebrosa ideia de que, com o andar do comboio, estamos a nos preparar para uma iminente terceira guerra. Quem sabe a última. Até porque a primeira foi de trincheira; a segunda, com uso de pesada tecnologia; bem, a terceira, só Deus sabe quais as suas conseqüências para todos nós, mesmo aquele que esteja escondido no mais distante rincão, ainda que alheio a tudo e deitado em alguma sobra de nossa consumida floresta tropical, até porque armas nucleares não distinguem quem está na briga ou quem é pacifista.
Com todas essas incongruências e desejos, ainda que inúteis ou úteis -, convocado pela filha, fui a São Paulo. Além de lhe fazer a companhia afetiva, tive a oportunidade comprovar que o novo ano estava realmente chegando. Percebi essa verdade factual pelo pipocar dos muitos fogos coloridos. Abraços. Desejos. Aconchegos. Alguns brindes. E, evidentemente, uma saborosa comida. Senti falta do nosso caruru. E da torta de camarão. Mas, segui a lição de Cristo, quando curava os que o procuravam, não disse nada a ninguém. Até porque, era apenas um detalhe. Tudo estava magnificamente bem. Era o momento de felicidade. Só percebido depois.
Saí. Fui dar umas voltas. Livraria Martins Fontes, Cultura, meus itinerários preferidos. E bancas de revistas, em fase de extinção, para adquiri jornais. E, no caminhar, fui me deparando com os nomes das lojas: Kipling, Puket, Practory, Nespresso – wat else? Crawford, Sunglass hut, Walk, Sephora, The Baby Shop e muitos outros, com linguagens semelhantes. Pensei: ainda estou em São Paulo? Dormi algum sono imprevisto e acordei em um outro mundo? Invadiu-me a dúvida definitiva e insistente: ainda estou no Brasil? Toquei-me para despertar dessa transitória letargia. E concluí: não, não sai do Brasil. A nossa pátria amada, em que pese o grito do Ipiranga, não perdeu o seu espírito colonial.

* Membro da AML e AIL.