Não quis acreditar, até porque o canal de TV no qual estava sintonizado para ver a abertura da Copa do Mundo e o jogo Brasil e Croácia, apenas o apresentador fez rápidas referências aos xingamentos que foram assacados contra a pessoa da presidenta Dilma Rousseff. Só tomei conhecimento dos fatos quando, para acompanhar as reportagens e comentários após a partida, liguei num dos canais da Espn e ouvi um dos comentaristas indignados referir-se aos insultos que foram proferidas contra a chefa do Poder Executivo brasileiro, que, no evento de abertura da Copa, representava o governo do Brasil e o nosso país, na condição de anfitrião, tendo ao seu lado representantes de Estados estrangeiros, além de muitos convidados, que aqui vieram acreditando na cordialidade do nosso povo. E todo esse pessoal e o mundo inteiro ouviram vozes, crocitando como abutres ensandecidos, como se estivessem numa arena romana, vendo dois gladiadores extirparem um ao outro, insultando a presidenta da República do Brasil, e dizendo-lhe, como se estivesse a falar para alguém íntimo da sua família: "Ei, Dilma, vai tomar no c..."

Quando, em 1936, Sérgio Buarque de Holanda publicou Raízes do Brasil, sua célebre e eterna obra, muitos acreditaram, numa leitura sem maiores exames do seu significado sociológico, que esse grande crítico e historiador havia tipificado o brasileiro como um "homem cordial", isso no sentido de ser uma pessoa afetuosa, de comportamento polido no trato com o outro. Nada disso. Sérgio Buarque, pai do nosso Chico Buarque, se refere ao homem brasileiro não como pessoa cordial na acepção de ser afável. Ao contrário disso, é o individualista, avesso à hierarquia, arredio à disciplina, desobediente a regras sociais e afeito ao paternalismo e ao compadrio. Nessa concepção, o "homem cordial" do autor de Raízes do Brasil não tem a nada ver como essa pessoa boazinha, afável e tratável. O perfil psicológico, social e cultural é outro, portanto bem diferente e não adequado para a vida civilizada numa sociedade democrática.
Esse perfil, descrito por Sérgio Buarque de Holanda nos idos dos anos 30, historicamente, justifica a falta de cordialidade que ficou bem evidente no estádio de futebol do Corintians, em São Paulo, onde se deu a abertura da Copa do Mundo no Brasil. Os insultos proferidos contra a presidenta Dilma Rousseff não podem ser justificados pelo exercício da liberdade de manifestação. Trata-se apenas de uma grosseria abjeta, mundana e execrável, que merece a condenação de qualquer pessoa que não sofra da mais simples doença mental, ou alguma patologia social. Portanto, são injustificáveis. Não gostar do PT, não gostar de Lula, não gostar de Dilma Rousseff não é motivo para recorrer-se a essa postura antirrepublicana, de absoluta insanidade, numa demonstração de que há um câncer corroendo o seio da sociedade brasileira, que precisa ser, antes de tudo, extirpado. Essas mesmas pessoas, se não elas próprias, mas seus pais, em tempo recente, se agacharam fazendo genuflexão e aplaudindo ditadores como Garrastazu Médici, o qual ocupava a tribuna de honra do Maracanã, com o radinho de pilha no ouvido, enquanto brasileiros eram torturados e mortos nos porões da ditadura, como ocorreu com a presidenta Dilma, hoje indignamente xingada, como se fosse moleque de recado dos donos da casa grande.
Li recentemente um texto de professora Elizabeth Balbachevsky, do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo, publicado na Folha de São Paulo (edição 8/6/2014, p. A3), sob o título Violência, participação e democracia. Não sei se vale a pena fazer citações, dada insanidade ética que tem tomado conta dessas pessoas que se dizem arautos da democracia e da liberdade de expressão. E, o pior, em nome da democracia e da liberdade, praticam os mais hediondos crimes. A propósito, a professora, ao falar sobre o direito à manifestação, afirma que "o reconhecimento de que a participação política, para ser legítima, deve se dar dentro das regras, é um pré-requisito central do jogo democrático. Sem regras, a política torna-se um jogo arriscado demais para permitir a participação ampla". Na sequência, acentua a professora Elisabeth que a violência, quer física ou verbal, nunca foi portadora da liberdade. "A violência - diz a mestra da Usp - como forma de participação se traduz na completa desconsideração pelo outro, na imposição unilateral de interesses de alguns sobre os direitos da grande maioria, e termina na desumanização do adversário: este perde sua condição humana para se converter na encarnação do mal, da 'opressão', da 'exploração' etc. E assim chegamos a um passo de defender sua eliminação física, pura e simples."  Nesses insanos xingamentos assacados contra a presidenta, seus algozes, aproveitando-se de um evento da estatura da Copa do Mundo, buscaram - creio que sem êxito - a sua eliminação moral. Não se trata de vaiar ou exercer a democracia na sua plenitude, mas de reles e abjeta grosseria, que, ainda assim, não se coaduna com a propalada cordialidade do povo brasileiro. O exercício de uma manifestação não pode ser traduzido na ditadura da vulgaridade e do desrespeito.