Joga a chave, meu amor, não chateia, por favor. Tou bebendo por aí, tou sonhado com você. Iê, iê, iê, iê, iê, iê, joga a chave, meu amor, não chateia, por favor. Essa é a súplica do malandro quando chega da farra e precisa ter a compreensão da mulher que está submissa no lar doce lar. Zangada, resiste em recebê-lo, e ele pede ao amor que lhe jogue a chave, por favor. Precisa do descanso da esbórnia. João Roberto Kelly, esse monumento da cultura do carnaval brasileiro, soube bem expressar nessa marchinha o sentimento de uma época, que vem desde Chiquita bacana, marcha feita por Alberto Ribeiro e Braguinha, que retrata aquela mulher lá de Martinica, que se veste com uma casca de banana nanica, mas existencialista, com toda razão, só faz o que manda o seu coração. Convivendo ao lado dessas mulheres do carnaval, e foram tantas, foi erigida a figura mais recente, não tão recente, da Multa bossa nova, que caiu no Hully Gully e só dá ela na passarela. Mas essa mulata está cheia de fiufiu esnobando as louras e as morenas do Brasil. João Roberto Kelly, mais uma vez, registra essa mudança de comportamento nessa marchinha que fez sucesso nas ruas e bailes brasileiros.
A mulher na música brasileira sempre foi maltratada. Nos sambas-canções e nos bolerões, faz o triste papel de traidora. O homem sempre vítima. Alcides Gerardi, um cantor que foi célebre nos anos 50/60, interpreta um bolero (Vítimas iguais), que expressa essa malquerença com a mulher. Depois de toda a letra da canção esculachar com a mulher, dizendo, entre outras agressões, que ela cultiva o pecado, fazendo do amor mercado, tabelando seu carinho, conclui afirmando que ela é joio não é trigo, é como qualquer artigo que pertence a quem der mais. As marchinhas e sambas carnavalescos amenizam esse tratamento, mas nem tanto. Foram incontáveis músicas que fizeram sucesso e ultrapassaram o tempo, continuando a alegrar os carnavais atuais: A mulata é a tal, Mulata yê, yê, yê, O teu cabelo não nega, Chiquita bacana, Aurora, Maria escandalosa, Maria candelária, Cadê Zazá, Suzana, e tantas e tantas outras, além da lua dos namorados ou camarada, pois, como diz a marcha-rancho, a noite é linda nos braços teus, é cedo ainda pra dizer adeus, a noite é de nós dois, vem que a lua é camarada, em teus braços eu quero ver o sol nascer. A lua, antes do atrevimento do homem de pisar no seu sagrado solo, era o símbolo dos namorados. Ainda se olhava com emoção para lua e para o céu estrelado. Hoje, nem tanto, olha-se, sem nenhum frenesi, para a tela do celular. O nosso satélite, ao invés de camarada e dos namorados, anda bem desprezado. Uma pena. Mas são os novos tempos. Nada se pode fazer.
Além de Zazá (Cadê Zazá), que saiu dizendo vou ali já volto já e não voltou, de Aurora, que tem questionada a sua sinceridade (veja só que bom que era), de Maria Escandalosa, que desde criança sempre deu alteração e só aprendia o que não era da lição, porém muito gostosa, tendo corpo de sereia que dá aula de anatomia, de Maria Candelária, a alta funcionária, que saltou de para-quedas e caiu na letra ó, que, a uma vai ao dentista, às duas vai ao café, às três vai ao modista e às quatro assina o ponto e dá no pé, há a mulata, figura indispensável do nosso cancioneiro carnavalesco. Sempre sendo discriminada, ou enaltecida. Antônio Almeida é o autor da célebre marcha A multa é a tal, cujos primeiros versos distingue o branco do preto: Branca é branca, preta é preta, mas a multa é a tal. Conclui: Ai mulata, cor de canela! Salve, salve, salve, salve ela! Bem. Há a mulata bossa nova de João Roberto Kelly, já citada, que caiu no Hully Gully. Vem de Lamartine Babo e os irmãos Valença O teu cabelo não nega, em que é ressaltado o valor da mulher-mulata, com referência à cor: O teu cabelo não nega, mulata, porque és mulata na cor, mas como a cor não pega, mulata, eu quero o teu amor. Não se diferencia muito da música de Antônio Almeida e Braguinha, A mulata é a tal, em que, nos primeiros versos, é feita a separação entre a branca e a preta, embora a mulata seja a tal.
A mulher, em que pese cantada na música e fora da música, é sempre posta num plano de inferioridade. Talvez seja um modo de homem se vingar de ela ter-lhe sido retirado da costela, como nos faz crer o Velho Testamento. Klécius Caldas, outro grande compositor de marchinhas de carnaval, nos brinda com a canção Papai Adão, cuja letra nos diz que Papai Adão já foi o tal e hoje Eva quem manobra e a culpada foi a cobra. Pode ser isso. Algum resquício de vingança carnavalesca. Ainda assim, vamos ao carnaval, com Zazá, com Aurora, ou com Suzana, ou nossas Marias que estão por aí, jogando a chave, pois tudo é amor. De carnaval.
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