O carnaval, antes de chegar, já chegou. As ruas são interditadas. Os blocos estão soltos. Os tamborins estão explodindo no ritmo da música carnavalesca, ou mesmo não carnavalesca, que se traveste com a fantasia do carnaval. Fora um pouquinho assim no passado. Com as festas pré-carnavalescas. Hoje, muito mais ainda. Tá todo mundo de ressaca. Antecipadamente. Mas não tão antecipadamente, assim. Como diria Machado de Assis: mudou o carnaval, ou mudei eu!
É a vez da mulata, tão vilipendiada e caricaturada. A exemplo, a encenação produzida pela Sra. Donata Meirelles, diretora do Vogue do Brasil e casada com Nizan Guanaes, numa noite de sexta-feira, em Salvador. Seu aniversário. Chique, como ocorre com os aniversários da burguesia. Todo mundo de branco. A socialite Donata sentada num trono. Mulheres negras, vestidas de mucama, tais quais as escravas, faziam a recepção dos convidados. E outras, negras, usando abanadores, ao lado do trono da "sinhá" Donata, em postura de servilismo escravista. São novos tempos, consequência da novíssima república que estamos a vivenciar.
Mas, quer queiram ou não, sem vilipêndio e caricatura, a mulata é a tal. Mesmo porque o teu cabelo não nega mulata, porque és mulata na cor, mas como a cor não pega, mulata, todos querem o teu amor. Mas, contrariando esses louvores machistas, estão querendo, os afoitos e intolerantes de sempre, preconceituosos de si mesmos, cassar o mandato de rainha do carnaval da mulata brasileira. Não sei se terão êxito nessa façanha destrutiva do que Gilberto Freyre chamou de "mulatismo cultural". Muita gente, entre as quais entro de mansinho, está demonstrando a sua insatisfação. A coisa, com licença da má palavra, sem racismo, hem?!, está ficando preta, diriam os antigos, sem querer insinuar que branco é branco, preto é preto, mas com certeza, insisto, a mulata é a tal.
Ora, em que pese D. Donata Meirelles, a música brasileira é cheia de morenices, mulatices, trejeitices e de neguices. Mas a mulata está sempre presente. Ou como mulata, sem morenice , ou com o preconceito da morenice. João de Barro e Antônio Almeida nos legaram o canto eterno de A mulata é a tal, marchinha carnavalesca que atravessou o tempo, sempre cantada pelos blocos de rua e nos salões. Isso desde 1947, ano do meu nascimento e de muita gente que anda por aí e que ainda se esbalda no carnaval, repetindo o estribilho de que a mulata é a tal. Os dois primeiros versos definem a distinção da raça brasileira, para concluir pela exaltação da mulata: Branca é branca preta é preta / Mas a mulata é a tal, é a tal. Já os Irmãos Valença e Lamartine Babo cantaram a mulata de um modo mais incisivo, definindo-a a partir do seu cabelo, da sua cor, que não pega, e da metáfora que a identifica como a alma cor de anil. Talvez seja esta marchinha que melhor enfatiza a nossa origem, estabelecendo a miscigenação do negro com o branco. A letra acentua essas diferenças, sem esconder o sentido racista de ser mulata: O teu cabelo não nega, mulata / Porque és mulata na cor / Mas como a cor não pega, mulata / Mulata, eu quero o teu amor. E lua invejando faz careta / Porque, mulata, tu não és deste planeta.
O mesmo Lamartine Babo deixou de lado a mulata e passou a cantar a morena: A morena é linda, linda morena, que me faz penar. A lua cheia que tanto brilha, não brilha tanto quanto o seu olhar. E aí vem o branco, que não dispensava as negras para, deitando-se com elas, fazer-lhes os filhos mulatos, porque nascidos sem serem brancos nem negros. Ou filhos morenos, paridos de cor escura, entre o branco e negro ou mulato. Quando os pais chegavam ao cartório para o registro. Tez, acentuava o tabelião: morena, numa fuga do colonizador branco e do colonizado negro. E a marchinha Linda morena enfatiza essas diferenças, para enaltecer a morena: Tu és, morena, uma ótima pequena / Não há branco que não perca até o juízo / Onde tu passas / Sai às vezes bofetão / Toda gente faz questão / Do teu sorriso.
Em 1964, ano fatídico, João Roberto Kelly, na célebre marchinha Mulata Bossa Nova, atualiza a mulata. Essa marcha foi feita para homenagear a primeira negra (mulata), Vera Lúcia Couto, que foi eleita Miss Estado da Guanabara, concorrendo, naquele ano, para Miss Brasil, tendo conquistado o segundo lugar. Conta a história que, no concurso de Miss Guanabara, quando passava pela passarela, uma mulher, como se estivesse na casa-grande, berrava: - Sai daí, sua crioula! Sai daí. O teu lugar é na cozinha! Conclusão: nada mudou. É a mesma casa-grande e a mesmíssima senzala. Mas a mulata não mudou, continua a tal.
Certo que, como dois e dois são cinco, os tempos são outros. A senzala acabou. Branca é branca; negra é negra, e a mulata, insiste a turma da moralidade, não é a tal. E eu daqui desse cantinho, como um jumento teimoso, na beira da estrada, digo: a mulata é a tal. Sem preconceito, e que se danem os insatisfeitos!
* Membro da AML e AIL.
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