Aureliano Neto*
Inicio este texto recorrendo a João Benedito de Azevedo Marques e subtraio sugestiva passagem do seu livro Democracia, Violência e Direitos Humanos, 4. ed., São Paulo, Cortez Editora, 1984, p. 16, em que, analisando as questões daquele momento histórico, quando arduamente e com profundo sacrifício, se lutava pela redemocratização do país, que vivia o estertor da ditadura militar, regime violento que ceifou as nossas liberdades por mais de vinte anos. Transcrevo esta exortação: “Os desajustes e as contradições do mundo de hoje parecem indicar a necessidade de se desfraldar a bandeira da Revolução Espiritual, muito mais ampla e abrangente que a Revolução Francesa e a revolução social, para que se reintroduzam a ética e o amor cristão nas relações humanas, complementando-se com a mensagem espiritual do Cristianismo a derradeira etapa da construção de uma humanidade fraterna e justa, ainda que longe da perfeição que, na escatologia cristã, pertence à eternidade.”
Pois bem. Parece que nada mudou. Estamos a viver a força avassaladora dos movimentos sociais reivindicatórios ou contestatórios, que alguns denominam a voz das ruas; outros de ser o maior acontecimento histórico, que, de hora em diante, revolucionará o fazer político, interferindo na relação de poder, isso quanto à dialetização das forças contrapostas: povo, sociedade organizada, ou desorganizada, e funções de instituições do Estado. Passa-se a ter um novo modus operandi de tratar as questões relacionadas com as coisas públicas. Todos esperam, com a sequiosidade daqueles que caminham pelo deserto, sem encontrar um mísero oásis, que esse vaticínio venha a ser real: que se possam administrar as coisas públicas sem a participação institucionalizada da política, ou mais particularmente dos políticos. Assim, passar-se-á à democracia bem mais abrangente do que a que vigorou na Grécia antiga, o berço do seu nascedouro, segundo afirmam alguns historiadores. E o povo fará uso da própria régua e compasso para traçar o seu destino. É, numa reatualizada concepção, o exercício da democracia direta, em que a representatividade política é posta numa situação de dúvida ética, em face do discurso da contaminação dos poderes pela corrupção. Dedução natural, porquanto, se a res publica se encontra em perigo, como indicam as manifestações sociais, no dizer de Régis Debray, citado por André Comte-Sponville, “a Democracia é o que resta da República quando se apagam as Luzes”. Então, como consequência do definhamento ético, o processo democrático deve se concretizar, de forma direta, através da cidadania ativa, porém no sentido de que o discurso tenha substancialmente a finalidade de uma reconstrução ético-cultural. Querendo dizer (e mesmo sendo) que não pode ser um discurso apenas de faz-de-conta, ou um antidiscurso, diluído por lhe faltar substância temática, ou se constituir em meros slogans panfletários. De outro modo, nessa trilha da reflexão de Debray, as Luzes permanecerão apagadas, ou, caso acesas, não serão sequer vista no fim do túnel. E na escuridão, como diz a fala popular, todos os gatos são pardos. Misturam-se os interesses mais antagônicos, que congregam o propósito pacífico, legitimado por si mesmo, independentemente do discurso fluido, e a violência de natureza nazi-facista.
Não há nenhuma dúvida de que os movimentos sociais são legítimos e têm a garantia, como manifestação da cidadania, de preceitos constitucionais, especificamente os direitos fundamentais (art. 5.º, XVI, CF), além de que a República Federativa do Brasil se constitui em Estado Democrático de Direito (art. 1.º da CF). Ainda, que todo poder emana do povo (parágrafo único do art. 1.º da Carta da República). Constitucionalmente, nessas regras, que não servem de meros adornos, ou inúteis proclamações, se encontra a força republicana da cidadania em, pacificamente, reitere-se, pacificamente, ocupar os logradouros públicos e fazer os protestos e reivindicações que entender necessários, com a finalidade de transformar a cultura política, contaminada pelo vírus das práticas incorretas ou inadequadas.
Não obstante isso, não há que se confundir o exercício desse direito, que materializa o exercício de poder, com o uso criminoso da violência, que é a negação desse poder. Hannah Arendt trata dessa questão na sua obra Sobre a Violência. Esclarece que poder e violência são termos distintos. O poder, embora seja instrumento de domínio, se institucionaliza com o consenso e o agir em conjunto. Ao passo que a violência deslegitima o exercício do poder, desintegrando-o. Conclusão óbvia: se os movimentos sociais representam o poder, na medida em que todo poder emana do povo e se corporifica pelo consenso, ao recorrerem à violência, amplamente divulgada por todas as mídias, perdem essa natureza de legitimação como poder, porquanto se desintegram a si mesmos, já que a violência não cria o poder, mas, ao contrário, o destrói. Os regimes ditatoriais, se recorrem à violência, como a tortura, para manter-se como poder, necessitam da aceitação. De outro modo, buscam a força para garantir o poder. Destroem-se a si mesmos, deslegitimando-se como poder. O recurso à violência por parcelas de integrantes dos movimentos sociais retira-lhe a natureza política de poder, forjado na aceitação e no consenso popular. Por essa razão, a violência destroi o poder dessas vozes fluidas que veem das ruas. Infelizmente, perdem essa legitimidade.
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