Aureliano Neto*

Estava lá ela inerte no chão. O corpo de lado. Nem em decúbito dorsal e muito menos em ventral. Um tanto de lado, quase lateral, sobre o braço direito. Mais acima, na parte da cabeça postada sobre vastos cabelos pretos, uma padiola, dessas de alguma ambulância, que sai por aí, com sirene ligada, para prestar assistência. Um homem de luva branca fitava o corpo inerte. Em volta, algumas pessoas. Curiosos, penso, a se olharem e a conversarem entre si. Desses que querem saber o que foi e como foi, e sentem o gosto especulativo de ver o corpo da vítima desfalecido no chão. Bem próximo, parecendo dois policiais, duas pessoas de farda observavam com atenção a figura da morta. Apenas espiavam. Um deles com as mãos cruzadas no ventre. Essa a cena onde o fotógrafo fizera o registra da falecida no trânsito. A morta, venho logo a saber, era Maria. Simplesmente Maria. Nada além de Maria. Uma Maria morta como qualquer outra Maria que morre todos os dias. Na rua, em casa, no hospital, na feira, no quarto, antes da quarta-feira, em qualquer dia da semana. Poderia ser a Maria conhecida de todos nós. Aliás, todas as Marias, ainda que mortas, são nossas conhecidas, mesmo que o seu corpo esteja em ligeiro decúbito estendido no asfalto, largado, pés descalços, com o braço esquerdo afastado, como se a implorar ajuda de quem curiosamente apreciava aquela cena trágica.
A notícia informava que uma empregada doméstica, identificada apenas como Maria, foi atropelada ontem pelo motoqueiro, de aproximadamente 20 anos, que pilotava uma motocicleta sem placa, da marca Suzuki, azul e branca, de 1.000cc. E acrescentava mais a fatídica matéria: Maria havia saído do seu local de trabalho - um prédio na área do bairro - para ir a uma farmácia. Estava sem documentos, o que dificultou a sua identificação. E, ao voltar para casa de seus patrões, quando tentava atravessar a avenida, fora da faixa de pedestre, fora surpreendida pelo veículo que trafegava numa velocidade de 170km/h. Ninguém da família apareceu para identificar o corpo. O nome Maria lhe foi dada por uma conhecida do prédio onde trabalhava. A motocicleta passou-lhe por cima do corpo, agora quieto, esparramado no asfalto, aguardando que as autoridades o removam para o Instituto Médico Legal, conhecidíssimo pela alcunha popular de IML: o lar imediato de Maria e de muitos, que a força do impacto da motocicleta, a uma cruel velocidade de 170km/h, reservou como passagem para o destino final que os poetas antigos chamavam de morada eterna.
Não foi dada a Maria tempo de viver a folia do carnaval. Morreu Maria na quarta-feira, antes da outra quarta-feira, a de cinzas, que está por vir. Nenhum parente próximo ou distante para reconhecer o seu corpo. Uma conhecida do prédio, talvez no meio dos curiosos, declarou às autoridades, creio eu, que se tratava de Maria. Ficou então Maria por Maria. O corpo, dizem os entendidos desses acontecimentos trágicos, foi levada para perícia. Ah!, não tenho dúvida, independentemente de ser Maria ou mesmo Aparecida, vão invadir-lhe o corpo desnudo. Seccionar centímetro por centímetro da carne indolor, na frenética busca de saber qual foi a lesão fatal. Se a pancada na cabeça, que fez a vítima brotar grande quantidade de sangue, que se espalhou pelo negro asfalto. Ou se outra lesão mais cruel. O certo é que, com perícia ou sem perícia, para apurar a causa mortis, como sustentam os legistas, Maria, a empregada doméstica, sucumbiu ante o impacto violento de um motocicleta, conduzida numa velocidade de cerca de 170km/h. Nessa circunstância, não lhe foi dada outra opção a não ser morrer. E Maria morreu muito rapidamente. Nem percebeu que lhe tiravam a vida. Ficou apenas Maria, nem casada, nem solteira, nem viúva, tão só a empregada doméstica que tentara atravessar a avenida na faixa de pedestre.
Ai de ti, Maria. Sem um parente, ainda que distante, para enterrar o seu corpo sem vida. Só uma conhecida do prédio teve a ventura de dizer às autoridades que eras Maria. Quem chorará por ti, Maria, morta no asfalto antes do carnaval, bem antes da folia? Quem derramará o pranto da saudade por ti, Maria, a empregada doméstica, que tentou atravessar a avenida e teve o impacto da portentosa motocicleta passando por cima do seu corpo, matando-a? Quem - todos suplicam, até mesmo os curiosos em volta do corpo no chão - chorará por ti, Maria, e reclamará os bens e todos os amantes por ti deixados? Não há e não foram encontradas respostas para essas indagações necessariamente humanas. O que se sabe, e disso não há nenhuma mísera dúvida, é que Maria morreu atropelada por uma motocicleta na avenida. Todos viram. E todos saíram do sossego das suas vidas para ver a morta estendida no negro asfalto da avenida, enrubescido pelo sangue, derramado pelo impacto do veículo no corpo frágil de Maria. Ah!, Maria, rogo a Deus que as autoridades, ciosas dos seus deveres, se lembrem de ti, como sempre fazem com todas as Alices ou Elizabetes, que tiveram o mesmo destino, mas não eram apenas uma empregada doméstica desconhecida, morta no asfalto, e depois descoberta que era apenas mais uma Maria.

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