Não gosto muito desse assunto. Quase ninguém gosta. Não é verdade? Mas, deixando os meus temores de lado, resolvi enfrentá-lo. Não por acaso, ou por sentir-me corajoso. Não é bem isso. O fato é que estava passando uma vista dolhos nos jornais velhos, nas páginas que tenho por hábito recortar. E vi o rosto risonho de Marielle Franco, ora da sacada de sua casa, ora da tribuna da câmara municipal, ou em uma reunião, a última que fez na Lapa. Ainda se lembram dessa favelada, vereadora ou, em síntese, o ser humano, que, por esses dias, não tão longe no tempo, foi brutal e cruelmente assassinada por arma manejada por atirador de elite? Pode ser que não se lembrem. Enfim, era apenas uma favelada, por acaso vereadora, com habitat na favela da Maré, no Rio. Apenas mais uma vítima de um sistema de exclusão social. Marielle, assassinada como foi, morreu com dignidade ou morreu de uma morte indigna? Quem a matou? Tudo foi filmado. Tintim por tintim. Só não se viu o rosto do executor. Mas toda a técnica logística empregada pelo matador, com a especificação do tipo de arma, as balas e a sua origem, ficou esclarecida sem que precisasse da perspicácia de um Hercule Poirot, de Agatha Christie's, para bisbilhotar a cena do crime. Mas... Volto obsessivamente ao "mas". Quem a matou? Donde se originou toda a trama macabra? Esse crime que atingiu, barbaramente, os direitos humanos, vai ficar no esquecimento dos interesses inconfessáveis? A nossa polícia, tão aguerrida nos últimos tempos, cumprindo as famigeradas conduções coercitivas e fazendo as mais científicas investigações, relatadas nos noticiários televisivos e na grande imprensa escrita, diariamente, ou mesmo de hora em hora, ainda não respondeu essas questões à sociedade brasileira, ao menos àquela parcela menos obnubilada com as peripécias novelescas da Lava Jato.
É certo que vivemos para morrer. Ou morremos de viver. Alguns felizardos abraçaram e seguiram esse último itinerário. O nosso poeta Vinicius de Moraes (poeta em tudo: nos poemas, na música e nas crônicas) morreu de viver intensamente a vida. Se não fosse essa sua vocação de viver com intensidade, quem sabe ainda estaria entre nós, abraçado ao violão e a declamar os seus poéticos poemas musicados por Tom, fazendo da vida uma transcendente poesia de viver.
Outros sequer vivem. Inexoravelmente morrem vivendo. E morrem melancolicamente, passando pela vida, sem sentir a felicidade de vivê-la. Numa situação ou noutra, uma certeza: a morte é uma ausência em nossas cogitações futuras. Vivemos para ser eternos. Há um poema de Cora Coralina, O cântico da terra, que ela fala metaforicamente da vida e morte: Eu sou a terra, eu sou a vida. / Do meu barro primeiro veio o homem. / De mim veio a mulher e veio o amor. / Veio a árvore, veio a fonte. / Vem o fruto e vem a flor. (...) Eu sou a grande Mãe Universal. / Tua filha, tua noiva e desposada. / A mulher e ventre que fecundas. / Sou a gleba, a gestação, eu sou o amor. (...) E um dia bem distante / a mim tu voltarás. / E no canteiro materno do meu seio / tranquilo dormirás. Manuel Bandeira reduziu tudo a um dos seus versos mais lembrados: A vida inteira que podia ter sido e que não foi. Enigmático, não? Mas poeticamente verdadeiro. Rilke suplica: Senhor, dá a cada um a sua própria morte. / Um morrer que venha dessa vida / que reparte por nós amor, sentido e aflição. / Porque nós somos apenas a casca e a folha.
Essa súplica de Rilke, sintetizada no pedir que seja dada a cada um a sua própria morte, contraria uma morte que, à revelia, nos é imposta, haja vista que deve decorrer de um morrer que venha da vida. Para lembrar: os facínoras anônimos pelo anonimato dos interesses impuseram a Marielle a morte que ela não queria, ao ceifarem com quatro certeiros tiros na cabeça a sua vida.
Saio dessa lembrança desalentadora do morrer impositivo e vou até um casal de Portland, Oregon, nos Estados Unidos, que, sendo portadores de doenças terminais, resolveu morrer junto em sua cama no dia 20 de abril de 2017. Tudo foi devidamente filmado pela família, genros e filhas, que ficaram extasiados com o sucesso do que se denomina de morte assistida. Francie, a mulher, de 88 anos, ao tomar dose letal de um medicamento, morreu 15 minutos depois. Charlie, o marido, com 87 anos, também tendo ingerido o mesmo medicamento, ainda demorou um pouco mais para morrer, uma hora depois.
Os últimos dias de vida dos mortos assistidos e devidamente medicados para esse fim foram registrados em vídeos. Tudo programado como exige um ato de desprendimento dessa natureza, embora para nós, ainda não adaptados a essa cultura da morte assistida ou digna, seja inatural. A filha Sher foi enfática e pedagógica ao afirmar: - Acho que vai ajudar a mudar o modo como as pessoas encaram a morte. Mas, afirmam os mais otimistas, com esse método científico de morrer, que todo o procedimento foi feito de conformidade com a lei. A lei da morte, que, nessas inusitadas situações, passou a ter prevalência sobre a lei vida.
Marielle, cuja morte lhe foi imposta, não teve essa opção de escolher morrer com dignidade, como ocorreu com esse felicíssimo casal de Oregon, que teve assistência médica até mesmo para avaliar a capacidade de cada um dos candidatos a defunto ingerir as doses letais do medicamento. Lá como cá, tudo filmado, passo a passo. Lá um espetáculo; aqui, uma tragédia. Mas a pergunta persiste sem resposta: - Quem matou Marielle?
* Membro da AML e AIL.
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