Aureliano Neto*
Minha casa era alegre. Cheirava manga madura. Nas tardes, exalava pelas janelas a fumaça cheirosa do café torrado, temperado com rapadura. Minha casa era música. Som do samba-canção, do bolero e do chorinho que atravessava todas as fronteiras dos sentimentos e se projetava pela vida, indo pelo quintal dos vizinhos até alcançar o outro lado do imponderável. As mangueiras inquietas balançavam, irrequietas. Gostavam do que ouviam. Minha casa era riso. E como se ria, na sala, à mesa do café, do almoço e da janta. Não consegui sair da minha casa. Ou eu estou dentro dela, ou ela está dentro de mim. No entardecer, nuvens passageiradas e desenhadas de figuras apontavam lá no alto. Eu cá de baixa a espiar. Ora era o velho de cachimbo, ora um leão com juba e tudo. Cada um criava suas figuras, como se todos fôssemos um Picasso ou um Monet. Da minha casa, sentado à porta, tínhamos a felicidade de apreciar as nuvens e as estrelas, que eram contadas aos milhares, na certeza duvidosa de que as verrugas poderiam aparecer na ponta dos dedos. Ainda assim, insistíamos nessa perigosa e incessante contagem, e até mesmo nominando a passagem de algum cometa com a sua cauda reverberante. E dizíamos na nossa descoberta de astrônomo precipitado: - Olha o cometa. Às vezes, uma mera estrela cadente, despregando-se do céu para cair não se sabe em que lugar do mundo. Lá vinha a estrela, para aonde ia? A nossa dúvida. Os mais velhos respondiam: - Só Deus sabe!
Um carnaval, passei na janela da minha casa. Estava de castigo. Não podia sair para ver o carnaval. Não me lembra que estrepolia fizera. Mas fizera alguma grave travessura. O castigo veio como sanção da peripécia: não ir à rua para ver o carnaval. Fiquei na janela, a apreciar as raríssimas brincadeiras que passavam: os blocos de sujo, algum fofão, que se perdera do rumo da praça, ou um homem vestido de mulher, com trejeitos esquisitos e engraçados. Foram três dias na janela, proibido de chegar até a praça, onde as brincadeiras passavam. A praça era bem perto. Ouvia o rufar dos batuques e o tilintar dos pandeiros tocados pelas meninas que embelezavam os corsos. Espichava o pescoço, porém restava apenas o som da alegria do carnaval. Hoje passo pela porta da minha casa e lembro de tudo. E lembro dos risos, das chacotas, do jogo de bola, da música do rádio, ligado bem na sala. Mas não me sai da lembrança esse carnaval da janela. Ficou conscientemente no meu inconsciente. Talvez Freud explique. Vamos ver se é possível trazê-lo lá do lugar distante onde se encontra. Quem sabe aceite o convite para vir desvendar esse mistério do carnaval da janela, retido no meu interior não como um momento de frustração, mas do primeiro sentimento de punição.
Minha casa tinha quintal, donde subindo na cerca espiava o outro lado da vida. A felicidade entrava pela varanda ampla que dava para o quintal, onde se soltavam, coloridos, os papagaios, que, empinados, balançavam no espaço com os seus rabos retorcendo-se como se estivessem a executar com esmero a Flauta Mágica de Mozart. De minha casa, o céu parecia mais azul, e as nuvens mais brancas. Não sei por quê. Essa dúvida me acompanha sem me possibilitar a mínima trégua de refletir de forma diferente. Ainda que queira, não consigo. Lá do quintal sabia quando o tempo estava bom. Não havia necessidade de consultar o oráculo da astrologia. A inquietação dos urubus indicava a certeza da chuva. - Vai chover, exortavam todos, com a certeza de que o sol desapareceria logo em seguida. Os urubus se aquietavam nos galhos das árvores, protegendo-se dos grossos pingos das chuvas. Pronto, era o suficiente. Em segundos, vinha o aguaceiro. A rua da minha casa, cheia de felicidade, logo transbordava, e os raios cortavam o céu sob o forte ribombar dos trovões. E os urubus quietos, cabisbaixos. De onde estavam não saíam.
Do quintal, via quando o céu ia limpando. Aos poucos, voltava o intenso azul e as nuvens brancas. O vento, que percorria toda a casa, de um lado para outro, trazia a mensagem da certeza de que o tempo se apaziguara. Era possível pôr a cabeça na janela. As pessoas, numa dança descompassada, andavam saltitando de poça em poça dágua. Misturava-se o cômico com o trágico. Casas que enchiam dágua, ficavam como barco à deriva, com os moradores escoando o aguaceiro. As crianças aproveitavam o que restava das goteiras para usufruir de um rápido banho. Da minha casa via-se tudo. Acostumei-me com essa visão. Essa casa de taipa e tijolo vive intensamente em mim. Respira nas minhas entranhas. Dá-me felicidade. Acostumei-me com ela. Fernando Pessoa, num dos seus versos, nos diz: "Não se acostume com o que não o faz feliz. Revolte-se quando julgar necessário." Não há necessidade de revolta. Acostumei-me com a felicidade da minha casa. Do riso, da alegria, da chuva, do sol, do céu, da nuvem, do papagaio empinado, do canto rouco, estridente e descompassado da vizinha faladeira, um tanto gorda, mas paciente com todas as nossas traquinagens. Pois é, a minha casa, muito antes de Chico Buarque, teve a felicidade e a fineza de desinventar a tristeza, até porque, como proclama Vinícius de Moraes, a tristeza tem sempre uma esperança de um dia não ser mais triste não. Por isso, vivo todo e sempre o respirar e o suspirar da eterna felicidade de minha casa.
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