Que ânsia de viver o tempo na concepção de a vida eternizar-se nele. Bem disse o poeta do nosso cancioneiro: viver é melhor que sonhar. E perceber que "apesar de termos feito tudo o que fizermos / nós ainda somos os mesmos e vivemos / como os nossos pais... Nesse viver atemporal, o passado e o presente se misturam num interminável avançar pela imprevisibilidade do futuro, ou mesmo pela imprevisibilidade da vida. O tempo do poeta é um amalgamar de todas essas vivências atemporais. O tempo é quando. De manhã escureço / De dia tardo / De tarde anoiteço / De noite ardo (...) Nasço amanhã. O tempo é quando, num amálgama de todas essas atemporalidades. Apenas o hoje, o amanhã ou o ontem. Nada importa. O que importa é viver o tempo. Não há velhos nem envelhecidos. Nem eternos jovens. Nem velhos eternos. Ou velhos consumidos pelo passado ou pelo presente. O tempo é quando. Nem quando fui, nem quando sou, nem quando serei. Apenas quando, sem passado, sem presente. O futuro é uma possibilidade do quando. Os que creem não titubeiam em afirmar, num vaticínio experienciado pela dúvida: o futuro a Deus pertence. É o temor pelo quando na sua imprevisibilidade. Elege-se um responsável pelo nosso destino, uma vez que a escolha do quando é o exercício de nossa liberdade ao optar pelas nossas escolhas. Nós, como os antigos navegadores, somos os responsáveis pela bússola que guiará a nossa caminhada, as nossas opções do quando.
Mas basta sobre essa conversa mole sobre o tempo, ou sobre o sentido poético do quando como tempo, conceito indeterminado erigido pela metafísica atemporal de Vinícius de Moraes, que teve a força poética de afirmar: eu morro ontem. E nunca morreu. Poeta vive eternamente enquanto poeta. Como disse Guimarães Rosa, em célebre frase que o eternizou: encanta-se. Ele também se encantou. Pois bem, basta desse início de metáforas sobre a temporalidade do tempo e sua atemporalidade. O certo, sem que percebesse, no primeiro dia deste mês, venci a batalha dos setenta. Verdade?!, sem atentar para o tempo, cheguei aos setenta. Para conformar-me, veio-me à lembrança uma frase do cronista Antônio Prata: - A gente não envelhece: os outros é que vão ficando mais novos. Quis acreditar. Talvez seja essa sentença, dita por um cronista de fama nacional, uma verdade indiscutível. Se não cri, aceitei-a, pelo menos. Pois é. Não vai tão longe o tempo, num quando qualquer, que saía resmungando, e com alguns bravos soluços de protesto, do útero da minha mãe Marionildes. De lá para cá, atravessei o Rubicão, mas felizmente não sofri a cruel traição de Brutus. Outras, sim. Mas superáveis. Tou por aqui. Lutando para falar sobre esse tempo vivido. Recorro a Fernando Pessoa, como auxílio para minhas justificativas de acertos ou frustrações. No Livro do desassossego, o poeta lusitano diz que "a vida é uma viagem experimental, feita involuntariamente. (...) O que se sentiu foi o que se viveu". Foram, na concepção pessoana, setenta anos de viagem experimental. Venci o tempo. Sonhei sonhos. Realizei alguns; outros, barrados pelas impossibilidades; o tempo os pôs no esquecimento. Tive muitas incertezas, mas não sucumbi. Enfim, estou gozando, e como estou, algumas benesses desse tempo, que me pegou desprevenido. Sou prioritário ou preferencial. Se sai um precatório (custa, mas sai), colocam-me, pelo tempo, na fila dos preferenciais. Agora mais ainda: setenta! Se estou numa dessas nossas filas tradicionais, alguém mais atento (ou atenta), com algum excesso civilizatório, sem nenhuma reles dúvida, dá um toque de leve em mim e diz com alguma benevolência: - O senhor, por favor! E eu, educadamente, atendo. Por que não gozar os favores da idade? Faço, em algumas situações, com algum constrangimento. Em São Paulo, no metrô, as mulheres, como sempre, são mais sensíveis a esses tormentos da idade. Ah!, Deus do céu, como são bons os ventos dos setenta! Ainda tem gente que esnoba. Faz questão de esconder a idade. Para tanto faz mil peripécias cosméticas e capilares. Eu, hein, não me insurjo contra a natureza. Como diziam os antigos: o que Deus faz, tá muito bom.
Mas, um tempo desses, quando ainda, às duras penas, caminhava para os setenta, cheguei a um banco para ser atendido no setor dos prioritários. Nessa época, não havia as cadeirinhas. A turma dos sessenta pra cima ficava numa fila. Alguns habilmente se faziam passar para usufruir desse favor da idade. Mas deixa isso pra lá. Vamos ao caso. Demora praqui, demora prali. Foi a minha vez. A moça do atendimento me olhou desconfiada e sapecou a infalível pergunta: - O senhor é prioritário. Não tive dúvida: - Sou, disse-lhe. Como?, respondeu a caixa, incrédula. E acrescentou: - O senhor não parece. Ah!, qual não foi a minha alegria. Fui trespassado por uma exultação juvenil. Enfim, eis o reconhecimento de minha exuberância física. Tou jovem, pensei. Nada obstante, a inquisidora exigiu a prova. Mostrei-lhe a identidade. Não se conformou. Apelei. Pus os pés, numa atitude circense, por cima do balcão. Pronto, sem mais delongas, fui atendido como prioritário. Dessa vez, a idade não me salvou. Como diz a música popular brasileira, são as trapaças da sorte. E vai-se vivendo, pois, como disse Niemeyer, a vida é um sopro. Aproveitemo-la, antes que seja tarde.
*Membro da AML e AIL.
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