A vida é aquilo que a gente quer que seja. Nossos passos são dados de acordo com as nossas medidas. Curtos ou longos, pouco importa, nós é que estabelecemos o seu alcance. Se queremos atravessar o Rubicão, como fez César, atravessaremos e aguentaremos as consequências da travessia, que pode ser tormentosa ou não. O nosso destino quem traça somos nós mesmos. Uma certeza absoluta: o ponto de partida de todo o caminhar, de toda a travessia, está na família. Nada a substitui. Ainda assim, mesmo considerando essa premissa, lembro de uma frase dita por um personagem de Paulo Mendes Campos numa crônica que li há algum tempo perdido na memória. Dizia o personagem: da vida só se leva a vida que se levou. Se se levou a vida de calhorda, dela só se levam as calhordices praticadas; se se foi santo, há o reconhecimento da santidade; mas, se se foi demônio, ficam as indignidades dos atos diabólicos. Enfim, somos o que somos, ou aquilo que nos introjetamos. Da árvore bem plantada e cultivada com carinho, só podem nascer bons frutos.
Os frutos brotados da árvore podem ser ou não bons. Dependem de quem a plantou e cultivou. Assim são os filhos, como esse personagem instigante. Um jovem comum. Corrijo: nem tanto como outro qualquer. Morador de uma favela, dessas tantas que fazem parte do cenário diário de nossos telejornais. Da família, foi o primeiro a chegar à faculdade. Curso: jornalismo. Não se submeteu ao modismo do cursinho. Apenas estudou. Fez o que muitos fazem: dedicou-se sem trégua ao estudo. No exame vestibular, passou em terceiro lugar, alcançando essa colocação no meio de uma avalancha de concorrentes. Muitos deles aquinhoados. Perguntaram-lhe como é a vida de um jovem na favela. Veio a resposta dada pela experiência de quem sabe o fardo que carrega: - Se você nasce na favela sua perspectiva de vida é outra. A visão do futuro é menos abrangente. O jovem fica muito focado no agora. E acrescentou destacando: - Há poucas chances de educação, trabalho e cultura. Você acorda bem cedo, anda muito até o ponto de ônibus, pega condução lotada, às vezes dorme sob tiroteio. Conclui: - Algumas pessoas deveriam passar uma temporada na favela, para ver se valorizam as oportunidades que têm.
Dirão os pessimistas: - É mais um herói favelado, desses que conseguem, entre milhões, salvar-se da tragédia da exclusão. Quem sabe não seja bem assim. Há uma quantidade desses heróis, esculpidos no seio de famílias pobres, que estabelecem a medida de sua luta e do seu destino. Esse jovem, como tantos outros, filho de empregada doméstica, portadora do ensino fundamental, que, com o auxílio do pai, aprendeu a ler por conta própria, educando-o para a vida. Deram-lhe o apoio moral e material para que valorizasse o pouco, transformando-o em muito. “Você tem a vida que nunca tive, tem uma visão de futuro que não temos mais. Tem que aproveitar”, afirmavam-lhe os pais, repetindo esse refrão como lição diária.
A mãe – força moral de qualquer família – não lhe deu trégua. Mãe a todo o tempo. No lar, no trabalho, na escola. Fazia do pouco tempo de que dispunha o espaço suficiente para acompanhar o filho. Teve tempo para ser mãe, já que, nos dias atuais, a grande dificuldade é ter tempo de ser mãe e vocação para ser pai. A vida exige outras obrigações. E o tempo de ser mãe e pai vai sendo consumido pela busca de novas conquistas ou meras futilidades. – Minha mãe ia todo mês à escola saber como eu estava em sala de aula, conversava com os professores, não perdia uma reunião de pais. Olhava os cadernos para ver se tinha recado, acompanhava o boletim, procurava saber o que eu achava do colégio, cobrava notas altas. Meus pais são casados há 19 anos, acentuou, talvez querendo lembrar que os casamentos atuais têm data de vencimento de título de crédito.
Esse meu personagem simboliza a luta dos que fazem da vida um bom combate para vencer as dificuldades, não se deixando sucumbir pelos mais duros obstáculos. Pobreza não pode ser sinônimo de fracasso. É também a possibilidade de se dar passos largos na busca da emancipação, conquistada na medida em que é possível viver-se, por êxito próprio, a cidadania no espaço meritoriamente conquistado, usufruindo as oportunidades lançadas no caminho.
A vida é o que queremos que seja. Ser filho de pobre não é ser vítima da pobreza. Nesse momento histórico, a mãe desse jovem tem duas alegrias: a de ver o filho superar as dificuldades inerentes a uma classe sem privilégios e de, como empregada doméstica, usufruir a conquista da igualdade dos seus direitos, ora reconhecidos pelo Congresso Nacional, ao extirpar uma das vergonhas do nosso sistema jurídico, o apartheid dos trabalhadores domésticos, até então subespécie de empregado, que passam a ter direitos trabalhistas sem nenhuma restrição. A emenda constitucional sepultou os cruéis resquícios desse processo escravagista. A justiça é feita por lutas. Billy Blanco, num dos seus sambas, metaforicamente exorta: “Faço da minha tristeza um carnaval de beleza.” E Vinícius nos afirma convictamente que a tristeza tem sempre a esperança de um dia não ser mais triste não. Esperança e beleza estão em nós mesmos. Basta que se combata o bom combate, como fez o meu personagem instigante.
Edição Nº 15053
Meu Personagem Instigante
Aureliano Neto
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