Por esses dias, saí daqui deste aprazível Estado, de belas praias e rios, para fazer uma visita de compromisso (dever de função) no Rio de Janeiro. Foram-me dadas muitas recomendações. Muito cuidado com isso, muito cuidado com aquilo. Parti extremamente precavido, literalmente sem portar um mísero canivete, ainda que pudesse topar na primeira esquina com um daqueles facínoras, que me daria um tiro de fuzil na cabeça, para fazer-me ingressar na estatística de bala perdida. Mas... para o meu consolo e aplacar os meus fortíssimos temores, lembrei, ou alguém mais aflito me alertou, que o Rio, com todas as suas belezas, só superadas por nossa terrinha, estava sob intervenção federal. Aí vesti a roupa da despreocupação. E fui ver dois shows, na linha de musicais: no teatro Rival, que fica na Cinelândia, numa sexta-feira à noite, quando o pessoal se solta e fica naqueles barzinhos tomando umas e muitas outras: outro no teatro João Caetano, na praça Tiradentes. Este show, muito bem produzido, era sobre a vida e a inesquecível obra de Gonzaguinha, que nos deixou em data não tão distante. Foram dois musicais extremamente gostosos nos quais se toma conhecimento de toda a trajetória artística de Gonzaguinha e da riquíssima produção de sambas de Wilson Batista. No primeiro musical, a presença da excelente intérprete Mônica Salmaso, cantora de exuberante e contida expressão de voz e percursionista do primeiro time. O segundo, no sábado, no teatro Tiradentes, espraiava-se da entrada ao palco a musicalidade desse artista, compositor e poeta dos maiores, que, no início, ficou conhecido como filho de Gonzagão. Fato que ele não o negava, embora haja dúvida, mas de nenhuma relevância para se entrar nesse debate. A mãe de Gonzaguinha, que morreu de tuberculose. Era cantora, dançarina e compositora. Deixou essa herança para filho. No Caetano, quem apresentou o musical foi um grupo de artistas mineiros, gente do primeiro time. Era um sábado, e o teatro estava lotado. Valeu a pena ter enfrentado os meus temores e arrostadas as preocupações dos meus amigos. Eu e minha mulher, atravessando toda a rua Álvaro Alvim até o Rival e dando uma volta pela praça da Bandeira, até ingressar na av. Senhor dos Passos, e saltar bem na porta dessa secular casa de espetáculo da Tiradentes.

Wilson Batista, sambista carioca, nascido na cidade de Campos dos Goytacazes, no Rio. De enorme sucesso, porém aos 55 anos faleceu numa situação de absoluto desamparo. Os amigos se cotizaram para fazer o seu sepultamento no cemitério Catumbi. 
Rivalizou com Noel Rosa, a partir de um samba de sua autoria em que enaltece a figura do malandro. A primeira estrofe desse primoroso samba diz o seguinte: "Meu chapéu de lado / Tamanco arrastando / Lenço no pescoço / Navalha do bolso/ Eu passo gingando / Provoco e desafio / Eu tenho orgulho / De ser vadio." Agradou a malandragem. Noel não gostou e fez outro samba em resposta a Lenço no pescoço: Rapaz folgado, dando origem à famosa polêmica entre esses dois grandes sambistas. E o que disse Noel, na interpretação de Aracy de Almeida?: "Deixa de arrastar o teu tamanco / Pois tamanco nunca foi sandália / E tira do pescoço o lenço branco / Compra sapato e gravata / Joga fora esta navalha que te atrapalha."  Esta é a primeira estrofe do samba de Noel. Daí pra frente os dois se digladiaram musicalmente. Wilson e Noel produziram memoráveis sambas, que se eternizaram na história do nosso cancioneiro popular, como Feitiço da Vila, que, na voz de Elizeth e acompanhamento de Jacob do Bandolim, ouvir é estar no céu. Ela é divina, e o samba também. 
Um dos sambas de Wilson Batista que não faz parte da polêmica é Meu mundo é hoje, cantado por Mônica Salmaso, com ela ritmando na percussão. Paulinho da Viola também o interpreta com aquele seu jeito intimista, que nos conduz com a leveza da poesia ao êxtase. Wilson faz desse samba um autorretrato, quando diz: "Eu sou assim / Quem quiser gostar de mim eu sou assim / Eu sou assim / Quem quiser gostar de mim eu sou assim." Este o refrão, bem balanceado nas vozes de Mônica, ao vivo, e Paulinho da Viola, em disco ou cd. Mais adiante, Wilson Batista, em belíssimos versos, extravasa a essência do seu mundo:: "Meu mundo é hoje / Não existe amanhã pra mim / E eu sou assim / Assim morrerei um dia / Não levarei arrependimento / Nem o peso da hipocrisia." E tem pena daqueles que se agacham até o chão, enganando a si mesmos, com dinheiro e posição. E diz mais o poeta sambista: "Nunca tomei parte desse enorme batalhão, pois sei que além de flores, nada mais vai no caixão. Wilson morreu pobre de dinheiro, mas rico em valor artístico. Enfim, além de flores, nada mais vai no caixão. O talento e a obra o imortalizaram.
O musical Gonzaguinha projeta a vida desse artista, que nos deixou tão cedo. Faz uma retrospectiva de toda a obra desse artista que compôs e cantou O que é, o que é. E Sangrando: "Quando eu soltar a minha voz por favor entenda / Que palavra por palavra eis aqui uma pessoa se entregando." Ou ainda, os seus célebres versos do samba O que é, o que é: "Viver / E não ter vergonha / De ser feliz /Cantar e cantar e cantar / A beleza de ser / Um eterno aprendiz." Basta isso para se compreender a dimensão poética de Wilson Batista e Gonzaguinha. Viver é não ter vergonha de ser feliz. E no samba de Wilson Batista, eu sou assim. E quem quiser gostar de mim, eu sou assim. Sempre foi. De outro, começaria tudo outra vez, como se fosse o sol desvirginando a madrugada, no canto de Gonzaguinha.
 

"Membro da AML e AIL.