Meu Brasil não é o de exibição de bandeirinhas verdes e amarelas. Também não é o Brasil de apenas cantar, em pose de sentido, o Hino Nacional. Meu Brasil não é tão somente o que ganha a Copa do Mundo, a servir de regozijo em passeatas ufanistas; mas também é o que perde, com a dignidade da cabeça erguida e não da subserviência. Meu Brasil tem várias cores. É o negro, o branco, o mulato, o pardo, o de alvos dentes, ou dos dentes amarelados, e ainda o dos banguelas, que emitem um sorriso trágico, a retratar a sua origem e as imensas dificuldades de viver. Meu Brasil é o do pescador, do lixeiro, daquele que estende as mãos nas ruas, a clamarem um insignificante pingo de solidariedade, e de todos aqueles corroídos pela droga, seja ela a socialmente admitida como a que é reprimida pelo Estado. Meu Brasil comporta variedades de viventes ou sobreviventes que, com a sua luta diária, contribuem para enriquecer os mais ricos, além de eleger todos aqueles que, fazendo uso do mandato de representação popular, viram as costas para esses brasileiros desse outro Brasil, que só valem o voto. Meu Brasil é o dos empresários, mas daqueles que humanizam a sua relação com os seus empregados, cumprindo as suas obrigações com lisura. Nisso, está o patriotismo, sem bandeirinhas. Meu Brasil é o Brasil da Justiça apolítica. Meu Brasil não é o da Justiça-vingança; é o da Justiça-justa, sem ódio. Meu Brasil é um Estado de princípios, em que magistrado é magistrado, político é político. Meu Brasil não é de uma pureza indevassável. Mas insiste em não misturar alhos com bugalhos. Meu Brasil tem alguma coisa a ver com Kant, esse filósofo que nos deixou grandes ensinamentos, a nos alertar que, no mundo social, existem duas categorias de valores: o preço e a dignidade. E assim os sintetizou: as coisas têm preço, e as pessoas, dignidade. Há muita coisa do meu Brasil que não tem a ver com este Brasil que nós estamos vendo por aí.
O grande cronista Paulo Mendes Campos, um dos meus gurus da escrita, numa crônica - Juventude de hoje, ontem e amanhã -, publicada no seu livro O anjo bêbado, de 1969, fala sobre as contradições desse nosso Brasil. Numa das passagens dessa crônica, Paulo Mendes Campos faz uma projeção alegórica do Brasil. Vejamos o que diz: - Imaginemos um ser humano monstruoso que tivesse a metade da cabeça tomada por um tumor, mas o cerebelo funcionando bem; um pulmão sadio, o outro comido pela tísica; um braço ressequido, o outro vigoroso; uma orelha lesada, a outra perfeita; o estômago em ótimas condições, o intestino carcomido de vermes... Esse monstro é o Brasil: falta alarmantemente o mínimo de uniformidade social. Profissão entre nós mais incerta que a de sociólogo só a de estatístico: as generalizações no Brasil nada valem, as médias aritméticas são grotescas, a busca de um padrão social é uma vaidade que não podemos ostentar.
De fato, se se for fazer um estudo estatístico sobre a renda per capita do brasileiro, daremos com os burros n'água. Pela apuração da renda, em face dessas generalizações grotescas, o favelado e o palafitado passariam, por força da desigualdade dos números, a ter um padrão de vida até, quem sabe, melhor que os europeus, embora estejam passando por extremas necessidades.
Na época da ditadura civil-militar, especificamente no período de Médici, vivia-se o milagre brasileiro. Era a fase do Brasil ame-o ou deixe-o, contaminada por exacerbado patriotismo, imposto pelo ditador de plantão. O Brasil passou a ser cantado em prosa e verso. Médici ia para o Maracanã com o radinho de pilha colado ao ouvido e, como se fosse uma ilha indevassável, cercado de segurança por todos os lados. E a ralé, como se estivesse no Coliseu, clamava, num estado de delírio para si mesmo: - esse é que o homem. Alguns chegaram a cogitar a permanência ad eternum do presidente do radinho de pilha. Pois bem, apesar dos pesares, ainda existem ufanistas até os dias de hoje. Infelizmente, ainda não nos desapegamos da senzala, até porque a casa grande continua cada vez mais gigante pela própria natureza, impávida e deitada em berço esplêndido.
Apenas a título de comentário, mas querer desagradar a turma do delírio, ouvi alguém dizer que o presidente eleito desse Brasil disforme, em reunião com a nata (tem também essa história de nata, devendo haver a nata de miseráveis, ou não?) de investidores, denominados de empresários, manifestou o seu descontentamento com a situação de sofrimento desse pessoal. Falaram-me que o presidente eleito extravasou a sua grave preocupação com a situação de padecimento em que vivem nossos empresários, ante a crueldade do ônus de ter que pagar direitos trabalhistas. Tanto que muitos já estão concordando com essa tese presidencial, consistente na intensificação da "reforma" trabalhista. Ou seja, justificam: é melhor ter emprego que direitos trabalhistas. Vieram conversar comigo a esse respeito, disse-lhes: Olha, meu caríssimo amigo, quem recebe 57 milhões de votos, sem pronunciar um mísero discurso, somados aos três milhões dos que se omitiram, pode fazer o que lhe der na telha. Quem sabe, até mesmo revogar a Lei Áurea. E, se bobear, teremos um outro Brasil, não necessariamente o do meu sonho ou de alguns brasileiros, mas o da volta ao passado. Ao menos, ajuda-nos a matar o nosso saudosismo. Insisto: de alguns.
"Membro da AML e AIL.
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