Aureliano Neto*
O nosso país tem uma história entremeada de momentos autoritários, em que o exercício pleno da cidadania sofreu brutais restrições. O Estado Novo, de Getúlio Vargas, foi um desses. E mais recentemente o golpe de 1964, apelidado por Stanislw Ponte Preta (Sérgio Porto) de Redentora, que contou com o apoio de vastíssimo segmento social, incluindo a grande mídia brasileira, cuja abrangência ditatorial se estendeu até a eleição presidencial de Trancredo, realizada, de forma indireta, pelo colégio eleitoral. Vindo a falecer antes da posse, coube ao seu vice, José Sarney, governar e instituir uma assembleia constituinte, que, com amplos e ricos debates, fez brotar a Constituição Cidadã de 1988. Em vista dessa farta história de autoritarismo, caracterizada pela luta do cidadão contra o Estado arbitrário, estamos no aprendizado da democracia, porém não tendo deixado de lado a mentalidade autoritária, apanágio de nossas elites.
Em leitura recente que fiz e não tive o cuidado de anotar o nome do seu autor, retirei essa reflexão: "Foi-se a ditadura, mas permanece, de vários modos, a mentalidade enraizada do autoritarismo." O ódio ao outro é disseminado com certa facilidade. Há um apego doentio a um discurso moralista, que, de moralista, muito pouco tem, enfatize-se. Algumas instituições falam da casa dos outros, sem limpar a sujeira da sala de espera da sua casa. É preciso que se reflita, antes que se aceitem os termos desse discurso. A questão é: o que está por detrás disso? Em adendo a essa passagem, recorro ao que escreveu o filósofo Paulo Ghiraldelli Jr. (Folha de São Paulo, 11/01/2011, p. A-3, In: Frustração e ódio à democracia): "Nesse tipo de onda, as pessoas começam a querer punições sem investigações apuradas, alimentando uma postura autoritária." É o que está ocorrendo. Um mero e bem elaborado fuxico midiático vira "denúncia" e consegue fazer ministros se afastarem dos seus cargos, sob o cruel rótulo de corruptos. As futricas políticas têm foro de verdade. Depois, o esquecimento e, feita a apuração, mais da vezes, nada fica provado. E o dito fica pelo não dito. Mas o objetivo pretendido foi alcançado.
Dia desse, fato recentíssimo, amplamente divulgado pelos jornais e televisão, houve um acidente de veículos em São Paulo, num cruzamento entre avenidas. Resultou na morte da mulher de um dos condutores e do filho recém-nascido. De logo, sem que se aguardasse o desfecho da investigação, concluíram que a culpa era do outro condutor, porquanto se encontrava sob o efeito de bebida alcoólica, tendo sido encontradas garrafas ou latas de cervejas no interior do seu carro. Foi imediatamente preso. Posteriormente, no curso do inquérito, feita a perícia técnica, no local, ficou constatado que o motorista do veículo que teve as vítimas fatais - marido e pai das vitimas - avançou o sinal vermelho, sendo esta a causa determinante do grave acidente. Isso é um fato demonstrativo de que a mentalidade autoritária midiática e das pessoas não almeja mais a isenção do julgamento; quer apenas punição. Uma reles suspeita reclama, de imediato, uma sentença condenatória. Invertem-se as garantias constitucionais: o suposto denunciado é quem tem que provar a sua inocência, e não aquele que acusa. Cristo não escaparia outra vez da cruz. Barrabás teria o alvará da turba, que condena e absolve, ao seu alvitre.
Em outro caso, também recente, e que teve desfecho por decisão judicial, o TRF, 1ª Região, manteve a sentença que absolveu o reitor da UnB Timothy Martin, que fora insistemente acusado, com divulgação ostensiva e diária da mídia, de desvio de verbas, que deveriam ser usadas em financiamento de pesquisas. Lembro que, à época, não se deu trégua, nem a mínima possibilidade de defesa ao reitor Timothy Martin. Pelo que fora divulgado, tratava-se de um agente público desonesto, que usou o dinheiro do erário em proveito próprio. As provas, apuradas pelo devido processo legal, a mais civilizada forma de julgamento que humanidade alcançou, disseram que não, culminando na sentença absolutória. O pior: a absolvição não teve a mesma amplitude publicitária que as graves e insubsistentes acusações, que foram maciçamente propagadas.
Em conclusão, faço outra citação, uma espécie de axioma: "Não há injustiça maior do que a pessoa ser injustamente julgada." Por isso mesmo, a função de quem julga não se restringe ao mero aplicar da lei. É, na essência, concretizar a justiça, adequando, através do processo hermenêutico, o que está escrito na norma, para que seja dada solução justa ao conflito, sob o pálio da imparcialidade. Em substancioso texto do advogado Nélio Machado (Folha de São Paulo, 12/01/2012, p. A-3, In: "O direito de se defender"), consta esta soberba lição: "As luzes midiáticas que refletem os prejulgamentos, normalmente equivocados, os direitos são desprezados e a injustiça concretizada." A todos nós é conferido o dever de refletir sobre os fatos, despido de preconceitos, a fim de evitar injustos prejulgamentos.
P.S.: Este texto foi publicado no Estado do Maranhão, e está republicado neste espaço, com algumas necessárias alterações.
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