Aureliano Neto*
A história é comum, porém o desfecho é que foi incomum, sob a visão empírica do leigo. Vejam bem: a notícia foi amplamente divulgada pelos meios de comunicação. Minha vizinha patusca, personagem dos dramas de Nelson Rodrigues, não compreendeu. Ficou ensimesmada. E fez aquela pergunta tradicional, com a ênfase da surpresa: - Como?! Antes de explicar, não para a surpreendida vizinha, mas a nós mesmos, inclusive a mim, esclareço o que aconteceu: - Duas crianças tiveram o direito de ter os registros civis de nascimento alterados para inclusão de uma segunda mãe. Ou seja: trocando em miúdos, a mãe biológica já estava com o nome registrado, tendo sido determinada a inclusão do nome da mãe afetiva, aquela que de fato criou as crianças requerentes do acréscimo, devotando a elas todo o desvelo maternal.
O caso foi o seguinte. Conto-o: a mãe biológica, a que gerou no útero as crianças, morreu quando os filhos estavam com dois e sete anos de idade. O pai uniu-se a outra mulher com a qual casou, de papel passado e tudo, como diz o nosso citadino numa linguagem sem rebuscamento. Com a convivência, estabeleceu-se vínculo afetivo entre a nova companheira do pai e os filhos do matrimônio anterior. Sem se preocupar em ser madrasta, foi mãe dos filhos biológicos do marido. Criou-os com dedicação e muito amor, como faz boa parte das mães. As crianças passaram a ter com ela uma relação de estreito sentimento filial, chamando-a afetivamente de mãe. Estabeleceu-se entre eles um laço materno-filial, sustentado pelo amor devotado aos filhos do seu companheiro, originados do útero da mãe biológica.
Essa é, pois, a nova família, reconhecida juridicamente em repetidas decisões dos nossos magistrados de base ou dos juízes que atuam nas instâncias de cima. Até antes da vigência da Constituição Federal de 1988, tinha-se apenas o fato sem qualquer repercussão no âmbito do direito. A partir dessa Carta republicana, passou-se a ter o que pode se chamar de estabilidade constitucional, com prevalência de normas principiológicas, encimadas pelo superprincípio da dignidade da pessoa humana, em que o ser humano ocupa, no ordenamento jurídico pátrio, a centralidade dos fins da realização do direito, não só a partir da positividade das regras legisladas, mas sobretudo da efetividade das decisões judiciais, momento em que a norma se corporifica no ato de decidir, assim não se resumindo este numa simples aplicação da lei, uma vez que, como ensina Javier Hervada (In: O que é o direito? A moderna reposta do realismo jurídico, p. 96), "as leis não constituem o objeto primário da arte do jurista. A arte do jurista consiste em determinar o direito, o justo". Em adendo a esse entendimento, à Constituição deve ser dada uma interpretação moral, ou seja, mais aberta, o que pressupõe ser aplicada à luz dos princípios superiores, contrariando o velho e carcomido brocardo "a lei é lei", cuja regra em si pressupõe uma prescrição restritiva da liberdade interpretativa de quem decide. Quiçá, nessa mudança hermenêutica, esteja o sentido do que se denomina de ativismo judicial, que tem natureza criativa no ato de declarar o direito.
Nessa trilha de reflexão, o Superior Tribunal de Justiça, pela sua Terceira Turma, ao decidir o Recurso Especial n.º 1000356/SP, cuja relatora foi a Ministra Nancy Andrighi, fixou o entendimento no sentido de que "ainda que despida de ascendência genética, a filiação socioafetiva constitui uma relação de fato que deve ser reconhecida e amparada juridicamente. Isso porque a maternidade que nasce de uma decisão espontânea deve ter guarida no Direito de Família, assim como os devidos vínculos advindos da filiação. Como fundamento maior a consolidar a acolhida da filiação socioafetiva no sistema jurídico vigente, erige-se a cláusula geral de tutela da personalidade humana, que salvaguarda a filiação como elemento fundamental na formação da identidade do ser humano".
Com esses novos entendimentos, emergidos da valoração do fato e da criação normativa, como ato de decidir, quando se realiza a norma nesse exato momento, a minha vizinha patusca não entendeu absolutamente nada, face à visão redutora do superado entendimento de que filho é filho, mãe é mãe, pai é pai. Ora, não é bem isso. A família da posmodernidade mudou. E mudou muito, tendo como centralidade a dignidade da pessoa que passou a assumir a dimensão transcendental e normativa de todo o ordenamento jurídico vigente.
Por isso mesmo, em que pese ter ficado ensimesmada essa minha vizinha, não é de surpreender o que foi decido acima e ainda mais o que decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo, ao reconhecer a existência de paternidade e maternidade socioafetivas de uma mulher que, filha de empregada doméstica, desde os quatro anos de idade, foi criada pelos empregadores, e, após a morte da mãe biológica, recebeu todo o cuidado como se filha fosse. Morrendo a mãe afetiva, sendo excluída da sucessão, a decisão do Tribunal de São Paulo foi de reconhecer a paternidade e maternidade socioafetivas, incluindo-a como herdeira na sucessão dos bens.
Essa, repito, é a nova família, despregada da concepção do legalismo da lei é lei, para ser reconhecida numa proteção de decisão normativa em que se impõe o ser humano na sua essência transcendental, sedimentado pelo vínculo do amor.
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