Aureliano Neto*

Penso às vezes que o mundo é das Marias. No passado, não tão distante, pensava que o mundo era dos orelhões, ora em fase de cruel extinção. Hoje, pode até não ser, mas chego à drástica e definitiva conclusão de que é dos celulares. Anda-se para todo lado, de baixo pra riba, como diziam os meus queridos avós, e só se veem celulares. Brancos, pretos, coloridos, com capa e sem capa, porém sempre nos ouvidos. O uso democrático e permanente do celular, numa demonstração de absoluta igualdade entre as classes, quer sejam dos pobres ou dos ricos, ou dos excessivamente ricos, nega tudo aquilo que Marx e Engels pregaram na introdução do Manifesto Comunista, objeto ainda de estudos dos nossos venerandos cientistas sociais, quando esses célebres arquitetos das idéias socialistas iniciavam seu discurso a partir da premissa de que “a história de todas as sociedades que já existiram é a história de luta de classes”. Os celulares, na sua simplicidade econômica, vilipendiam esse axioma socialista. E acentuam, como verdade inquestionável: – Acabou a luta de classes. Enfim, não há nenhuma, sequer uma reles, restrição de etnia ou de gênero. Os celulares são de todos, indistintamente. Para comprovação dessa verdade não tão transcendental, basta dar uma perambulada, com ares de bisbilhotice, por nossas ruas, praças e shopping, que se comprova o inevitável: os celulares estão nas mãos de todos e de todas, do mamando ao caducando.
Lembram as distintas senhoras e os distintos senhores dos orelhões, corruptela linguística dos telefones públicos. Já tiveram a sua vez. Mandavam e desmandavam. Faziam-se filas, para deles fazer uso. Estavam em todos os lugares. Nos bares, nos calçadões, nas favelas, com direito à inauguração com retretas e discursos efusivos, e o povo aplaudindo entusiasticamente. Ah!, também estavam nas praias, bem pertinho do mar. Sofriam os orelhões do carisma da democracia do consumo. Mas, para seu uso, exigiam as fichas. Fichinhas enjoadas, compradas na banca de jornal ou nos caixas das lanchonetes e das farmácias. Alguém, com o saudosismo peculiar de todos nós, como a transformista Rogéria, que já foi indevidamente rotulada de travestir, referindo-se aos anos 70, lembra ainda do número da sua primeira linha telefônica, que guardou perenemente na memória: 711-0011. Porém, não esqueceu do início dos orelhões: À época áurea dos orelhões, diz evocando a lembrança daqueles momentos, era uma maravilha. Era uma época em que a Cinelândia parecia a Broadway. Lembro do barulho das moedinhas caindo. Como era chique, hem?! As moedinhas caindo, o número discado e o sinal do atendimento do outro lado da linha. – Alô! É, Maria, tudo bem. Como foi o parto. Ah, ótimo. Estou muito ocupado, logo estarei dando uma chegada por aí, para beber o mijo do garoto. E aí, meu caro e caríssima, desse passadista diálogo com a Maria de todos os pecados e virtudes, desponta a questão tormentosa: ainda se bebe o mijo da criança? Não sei. Talvez esse costume secular tenha desaparecido, como estão desaparecendo os orelhões. Queira Deus que não, pois aproveitei muito esses momentos para contaminar o meu fígado, e a vesícula foi que pagou o pato.
Olhem bem: os orelhões são coisas nossas. Foram construídos por tecnologia nacional. Portanto, deve ser dito, com a gravidade que exige o momento, que, além de sabermos jogar futebol, com cinco títulos mundiais conquistados e inúmeras arenas dessa prática esportiva erigidas como se fossem Coliseus romanos, concebemos o orelhão, essa cúpula acústica, a princípio bem aceita, de cor azul, que aconchegava os telefones públicos. O celular chegou e disse, do alto de sua utilidade: agora quem manda sou eu. E pronto, não há mais que discutir. Fim dos orelhões.
Minha atroz dúvida: não sei até quando os celulares mandam no pedaço. Pode ser que logo descubram outro artefato tecnológico que o substitua. Mas as Marias, com certeza, continuarão vigorosas, soberanas, altaneiras. São tantas Marias, a palmilhar os nossos caminhos. A partir da Virgem Maria, que teve aquela conversa histórica com o anjo Gabriel. Essa famosa Maria exerceu a sua liberdade de dizer ao anjo que aceitava ser mãe, embora desafiando os preceitos morais e religiosos da sua época, uma vez que estava prometida em casamento. A confusão criada por esse sim foi resolvida da melhor maneira possível, porque, naqueles tempos, sempre aparecia um anjo para esclarecer as dúvidas. Bem diferente dos dias atuais que a gente tem que ter cuidado com os excessos de demônios. O pior de tudo é que há demônios para todo gosto. Até que seria de bom alvitre aparecer hora e outra algum anjo protetor, que não fossem desses midiáticos que nos atormentam com a sanha virulenta do satanás.
De Maria de Nazaré, vieram tantas outras Marias. Em casa, para não fugir da regra, tenho uma Maria. É a Bernadete Maria. Há Marias que ficaram famosas. Maria Bethânia, Maria Gadu, Maria Creuza. Mas dizem que Maria é também Miriam. Não pesquisei etimologicamente. Acredito que sim. Maria e Miriam, se não têm a mesma origem e significado, pelo menos fazem uma boa rima, embora nem sempre seja a solução. Já encontrei Flor de Maria, Maria da Penha, Maria da Felicidade e uma Maria Joaquina, que era vizinha da Maria Cecília, que tem uma prima chamada de Maria Rita. Uma dessas Marias me chamou a atenção: Maria Passa na Frente, que vai abrindo as estradas, as portas e os portões e abrindo casas e corações. Amei essa Maria, por ter essa vocação de abrir caminhos e corações.

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