Aureliano Neto*

Parece tautologia repeti o tempo, para falar sobre o tempo. Mas dizem que boa parte do nosso funcionamento mental ocorre inconscientemente, e que a consciência é uma parte bastante limitada de nossa mente. Daí, creio eu, a importância do tempo, uma vez que o nosso inconsciente é o depositário de todo um passado, que, de quando em vez, vem à tona. Com razão o adágio popular: Deus nos concedeu a memória, mas também o esquecimento. Ocorre que o esquecimento não existe. Nunca esquecemos nem o que nos acontece de bom nem o de ruim. O nosso inconsciente aprisiona - e o guarda bem guardado - todos os fatos que marcam a nossa vida. Por isso é que nunca somos. Estamos sempre sendo, já que viver é um nunca acabar de ser. Saramago, aqui sempre lembrado, em O Evangelho Segundo Jesus Cristo, diz que todos nós temos uma dor sem remédio. Assim, algo que está dentro de nós a nos acompanhar a vida inteira, como prisioneiro no nosso íntimo. Em contrapartida, assim como há uma dor sem remédio, do mesmo modo, tem-se impregnado em nós mesmos a felicidade de um momento que essa mesma dor sem remédio não consegue extirpar. As duas ambivalências convivem. Ora prevalece uma, ora prevalece a outra. Nós somos uma antítese na procura permanente da síntese, que é o encontro em definitivo com a felicidade. Talvez seja a razão do escritor português Camilo Castelo Branco afirmar que o amor é a primeira condição da felicidade humana. Quem sabe a razão esteja com esse romancista lusitano.
Vendo um filme, de nome sugestivo: Nunca é Tarde para Amar, em que os personagens se encontram e se desencontram no tempo, percebi essas contradições temporais. A mulher mais madura e o homem mais jovem. Uma historinha que não diz muita coisa, mas que aponta os problemas decorrentes do conflito de gerações. Mãe, filha e o namorado desta e daquela. Registrei um diálogo entre os protagonistas. A mulher mais consumida pela idade e não pelo tempo dizia: - Eu fico pensando que você é muito jovem... E ele, de fato bem jovem, retruca: - Eu planejo envelhecer... E ela, em resposta: - E eu não planejo ficar mais jovem... Ainda assim, foram procurando acertar as suas diferenças dos trinta e dos cinquenta anos de vida, que os marcam, num esforço comum de superar.
Se a fronteira entre o feminino e o masculino está se dissolvendo, não há dúvida de que já não mais existe esse limite coexistencial entre o novo e o velho. Alguém, procurando dar ênfase à velhice, disse que o pior da velhice não é o viver, é não se chegar a ela, até porque, no meio caminho, pode-se encontrar a pedra da impossibilidade de prosseguir: a morte.
No meu tempo (e essa frase é cruel, por demonstrar que os outros tempos já não são nossos), o sonho de todos nós era ser um bom (ou mesmo excelente) datilógrafo. Havia as escolas que davam cursos de datilografia. A, S, D, F; Ç, L, K, J. As teclas eram repetidas e batidas à exaustão. Consumia-se resma de papel. Aprendia-se a bater a máquina com os dez dedos. Os concursos, sobretudo, dos bancos oficiais exigiam esse conhecimento técnico: bater a máquina de datilografia, num tempo mínimo, com poucos erros e agilidade. Essa parte do exame reprovava, ainda que o candidato tivesse tido êxito nas provas de português ou matemática. Lembro de um professor, que soube recentemente que faleceu. Um dos grandes mestres de matemática que tive. Omito o seu nome. Esse professor, ao se submeter aos concursos do Banco do Brasil, tirava dez em português e matemática, mas não alcançava êxito no exame de datilografia. Ficava reprovado. Outros passaram. Fizeram a vida. Construíram a sua felicidade entre as máquinas e papéis do banco. Ele, por não conseguir ser um bom datilógrafo, continuou como professor até a morte, embora, creio, sem deixar de ser feliz.
Essa dicotomia de passado e presente é avassaladora. Não temos como nos livrar do tique-taque do A, S, D, F; Ç, L, K, J. Isso fica na cabeça. O velho e novo, este agora representado pelos computadores, meus tormentos atuais. Ah!, a minha primeira comarca, bem distante, quando lá cheguei com a minha mulher e filhos, levava a tiracolo uma duas caixas de livros, as malas e eterna companheira para produção de despachos e sentenças: a máquina de datilografia, que ainda se encontra bem guardada, esperando um dia a voltar a ser útil. Para minha grata surpresa, tomo conhecimento pelos jornais que o governo da Rússia, com a essa onda de bisbilhotice internacional, patrocinada pelos americanos do norte, encomendou a compra de máquinas de escrever, para livrar-se da espionagem. Mas não são as velhas e carcomidas máquinas mecânicas. São, ainda assim, as velhas máquinas elétricas. Vejam bem: o velho e novo passam a conviver. De um lado os sofisticados computadores, capazes de fazer o diabo. Já levaram o homem à Lua, ajudaram a descobrir novos planetas, modernizaram os procedimentos médico-cirúrgicos, enfim fizeram coisa do arco-da-velha. Do outro lado, o retorno do velho: a antiga máquina de escrever. Pois é: o passado está sempre presente, ora como sonho, ora como pesadelo, ora como realidade inafastável. Que digam os russos, que primeiro mandaram o homem ao espaço sideral e que voltam ao velho hábito da máquina de escrever.

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