Aureliano Neto*

O cronista tem por hábito levantar cedo. Bem cedo. Vai para janela. Abre-a, de lado a lado. O sol, reverberando luminosidade ainda amarelada, filtrada pelas densas nuvens, sem o calor que só se fará sentir pelas onze horas. Fica, quieto, um tanto sisudo, preguiçoso, debruçado no parapeito, perscrutando o mundo. As pessoas passam. Apressadas algumas, outras nem tanto. Tenta penetrar no pensamento dos que transitam pela rua. Uns bocejando, a transmitirem a certeza de que o sono da noite finda não foi suficiente para aplacar o cansaço do dia anterior. Cada uma leva consigo toda uma vida, resumida naquele começar do dia. É de manhã. Para muitos, o início de tudo. De muitos sonhos. A mulher, ainda bem jovem, corpo magro, vestindo calça justa, bem colada da cintura até o fecho final da perna, em que se vêem dois quase imperceptíveis lacinhos, caminha, em passos ligeiros, do outro lado da rua. Olha com firmeza para frente, como se fosse maratonista, lutando para alcançar o ponto de chegada. Bem atrás, um homem velho. De velhice exposta no rosto enrugado de estrias, com a barba espaçada. Ia no encalço da jovem, que aparentava ser vendedora de loja de departamentos. Havia um descompasso no andar dos dois. O da frente com pressa de chegar, contrariando a calma da manhã; o que de atrás, fazia esforço para ter pressa, mas o seu corpo alquebrado o retinha, como a lhe dizer: - Calmo! Não fique tão avexado assim. Ainda que em passos marcados pelo tempo da idade, você chegará lá. E repetia o interlocutor anônimo, a sussurrar no ouvido daquele transeunte cansado: - Não adianta pressa, o tempo é curto, é um nada. Cada minuto, cada segundo devem ser vividos à exaustão. A vida tem um significado maior do que o simples chegar. Entre o partir e o chegar, há toda uma essência do viver.
E o cronista, na janela, continuou absorto a examinar os seus personagens. Todos com a avidez de chegar a algum lugar. E com muita pressa. De repente, desponta o carroceiro. Figura mítica dos tempos passados, ora em extinção. Nada carregava no rústico veículo de tração animal. Mas, lançava repetidamente o rebenque na direção da esquálida égua, que estralava no ar da manhã um som aterrador, como a exortar o animal, que o ajuda no pão de cada dia, a correr, vencendo o tempo, para saciar a fome de todas as suas carências.
O cronista ficou a refletir sobre essas cenas, numa primeira vista, comuns do cotidiano de todos nós; num segundo momento, para manhã que iniciava o novo dia, muito singular, já que o mundo visto da janela não parecia diferente do da rua movimentada pela multidão de transeuntes e pela velocidade dos veículos, cujos condutores, com a pressa de vencer o espaço e o tempo, querem chegar a algum lugar. Lembrou o cronista de um poema de Alberto Caeiro, um dos alter ego de Fernando Pessoa, no qual o bardo traduz a sua inquietude com a pressa. Diz o poeta: "Não tenho pressa: não a têm o sol e a lua. / Ninguém anda mais depressa do que as pernas que têm. / Se onde quero estar é longe, não estou lá num momento." Pois é. Proclama o velho brocardo popular: a pressa é inimiga da perfeição. Para que pressa, se não construímos a vida num instante. O poeta de O Guardador de Rebanhos teve a sensibilidade de, num sonho de primavera, como uma fotografia, ver Jesus Cristo, "tornado outra vez menino", descer pela encosta de um monte, porque "tinha fugido do céu" e, sem pressa, aprendeu com o Menino muitas coisas, e olhar devagar para elas.
Apaziguado pelo poeta, o cronista ficou ainda mais quieto na janela. Não tinha pressa de sair para ver a dimensão do mundo e suas inquietudes. O mundo estava ali mesmo, pois daquela janela estava a espiá-lo sem ser maior nem menor a grandeza do realismo do que via: a moça, apressada, e o velho, cansado das incruezas do tempo.
Num átimo, conhecidos e amigos passavam em frente à janela. Nem sequer acenavam. Olhavam de esguelha. Tentou chamá-los. Impossível. Alguns deles, sem exercer a sagrada liberdade de escolha, foram chamados antes da chegada da primavera. Lembrou deles. Não quis referir os nomes, até porque nada mudou, ou, quem sabe, tudo mudou. O que fora antes, não será depois. Talvez esse olhar passageiro, de soslaio, tenha a ver um pouco com Caeiro, que, num dos seus poemas, nos adverte que "se, depois de eu morrer, quiserem escrever minha biografia, / Não há nada mais simples. / Tem só duas datas - a da minha nascença e a da minha morte. / Entre uma e outra coisa todos os dias são meus".
Um dos que acenou à distância, lembra, foi José de Ribamar Garros, que teve parte da sua vida dedicada a esta cidade, tendo trabalhado, de modo mais intenso, nas administrações dos prefeitos Carlos Amorim e Ribamar Fiquene. A notícia de sua partida foi divulgada com pesar, mas o cronista tomou conhecimento na coluna de Maria Leônia, publicada no jornal O Estado do Maranhão. Garros, como era conhecido, sem o José de Ribamar, foi importante na construção deste polo econômico. A lembrança que vem ao cronista se esvai no tempo. Candidato a deputado estadual, integrando o grupo liderado por Agostinho Noleto, o apoio era dado a João Alberto. Reeditada a aliança democrática, João Alberto foi escolhido para vice-governador, com Cafeteira. O cronista, ao chegar ao escritório, recebe recado de Garros, para conversar com o então deputado federal Edison Lobão, que se lançara ao senado. Atendido ao convite, que teve Garros como intermediário, houve a conversa com Lobão. O contato foi mantido com os componentes do grupo (Agostinho, Fiim e Conceição Formiga). Houve reunião na casa de Agostinho, para os acertos do apoio político. E o cronista foi quem levou, em seu carro, o deputado Lobão, candidato a senado, para o encontro. Lobão se elegeu senador, mas o grupo, no curso das eleições, passou a apoiar Américo de Sousa. Garros se foi, sem novos contatos, sem um pequeno aceno, e, o pior, sem tempo de escrever o seu haicai de despedida. Imperatriz deve-lhe alguma coisa. Se muito ou pouco, a história é que dirá.

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