Louco e lúcido. Criador da sociedade alternativa. Assim, e muito mais, foi Raul Seixas. Baiano de nascimento e, desde menino, dedicou a sua arte musical ao rock. Foi um autor revolucionário, ao lado de Paulo Coelho, o letrista de suas canções. Tive oportunidade de assistir o documentário a respeito da sua vida artística. Sempre rebelde, em todos os sentidos. A droga o consumiu e ele consumiu grande quantidade de drogas. Faleceu no dia 21 de agosto de 1989. Foi encontrado morto pela sua amiga e empregada Dalva Borges. Dizia com muita ênfase: - Ninguém me descobriu ainda. Sou tão grande ator, tão bom ator, que finjo que sou cantor e compositor e todo mundo acredita. Este o irreverente Raulzito. O ano de 2019 registrou a passagem dos trinta anos de sua morte (física). A sua obra continua eterna, imperecível. O que quero dizer é que a música de Raul Seixas não representou uma nuvem passageira, fugaz. E é ele quem afirma: - Vou ficar... ficar com certeza, maluco beleza...
Louco e lúcido. Preferia ser “essa” metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo. Nesses versos, de uma de suas mais músicas mais provocante, Raulzito deixa bem claro que tinha uma postura sempre renovadora. Faz falta nesse conformismo patológico de nossa sociedade, que parece que não tem alternativa. Se ele estivesse entre nós, estaria concitando-nos a viver a extremamente liberal e democrática sociedade alternativa. Ou seja: Se eu quero e você quer tomar banho de chapéu, ou esperar Papai Noel, ou discutir Carlos Gardel, então vá!, faz o que tu queres. Em companhia de Paulo Coelho, fez uma alegoria histórica ao ritmo do rock: Eu nasci há dez mil anos atrás, música estruturada com versos lindos, pertinentes, engajados, denunciadores. A primeira estrofe é de uma beleza encantadora. Vejamos: - Um dia, numa rua da cidade / Eu vi um velhinho / Sentado na calçada / com uma cuia de esmola / e uma viola na mão /O povo parou para ouvir / Ele agradeceu as moedas / E cantou essa música / Que contava uma história / Que era mais ou menos assim. E aí o personagem, o velhinho, começa a contar a sua história, que viu Cristo ser crucificado / O amor ser assassinado / e as bruxas pegando fogo / Pra pagarem seus pecados. E mais: - Eu vi o sangue / Que corria da montanha / Quando Hitler / Chamou toda Alemanha / Vi o soldado / Que sonhava com amada / Numa cama campanha / Eu li! / Eu li os símbolos / Sagrados de umbanda / Eu fui criança para / Poder dançar ciranda / Quando todos praguejavam contra o frio / Eu fiz a cama na varanda. Essa canção de Seixas e Paulo Coelho tem uma poeticidade tão profunda, com recursos metafóricos de passagens históricas, que denunciam as nossas contradições, como o Cristo crucificado e o amor assassinado, e o Zumbi fugir com os negros pra floresta pro Quilombo dos Palmares, e, o pior, ainda continuam essa luta de fuga e antifuga, sob o olhar complacente daqueles que dizem: eu não tenha nada com isso. Mas a mensagem da canção continua atual, assim como Ouro de tolo, que se constitui num grito de irreverência contra o conformismo, muito típico do nosso povo. As duas primeiras estrofes chutam para bem longe o nosso patológico conformismo: Eu devia estar contente / Porque eu tenho um emprego / Sou um dito cidadão respeitável / E ganho quatro mil cruzeiros / Por mês / Eu devia agradecer ao Senhor / Por ter tido sucesso / Na vida como artista / Eu devia estar feliz / Porque conseguir comprar / Um Corcel 73. E essa música vai se insurgindo contra o conformismo, até mesmo do domingo concedido para ir ao Jardim Zoológico dar pipoca pra macacos.
Em Gita, o seu grande sucesso, que, em sânscrito, significa canção, se inspira num poema que fora concebido há mais de cinco mil anos. A letra é de Paulo Coelho, e se refere a um amor calado, que não fala quase nada e que fica sorrindo ao lado da amada. Trata-se de um poema lindíssimo. Duas estrofes dessa canção são enternecedoras: Eu sou a luz das estrelas / Eu sou a cor do luar / Eu sou as coisas da vida / Eu sou o medo de amar. / Eu sou o medo do fraco / A força da imaginação / O blefe do jogador / Eu sou, eu fui, eu vou. E numa terceira estrofe, encontram-se essas antíteses, que dão ênfase a todas as nossas contradições e desamores: Eu sou a vela que acende / Eu sou a luz que se apaga / Eu sou a beira do abismo / Eu sou o tudo e o nada. Tudo isso, nessa canção tão poeticamente linda de Raul e Paulo Coelho, pode ser encontrado numa escultura, num quadro, num filme, como em Noites de Cabíria, de Felini. Está lá o tudo e o nada, a vela que acende e a luz que infelizmente apaga. O falso e o verdadeiro. Por isso, Raul insiste no Tente outra vez, para que não se diga que canção está perdida. Nada acabou. Tente. Recomece a andar. Isso a nos dizer que não podemos desanimar. O mundo não está perdido, embora haja os conformistas que se conformam apenas com a comida do dia a dia. Com o emprego informal. Com as migalhas dos ricos. É preciso sempre, sempre, resistir. Lutar. As músicas de Raul e Paulo Coelho nos concitam a essa caminhada espinhosa, mas necessária.

Membro da AML e AIL.