Quando a gente ultrapassa os trinta, como acontece comigo e muitos outros, surge essa história de “no meu tempo”. Pois é. No meu tempo – falava eu com um amigo -, as mulheres tinham toda a primazia. Nos ônibus e nos bondes, tinham preferência de fazer o trajeto sentadas. Disputavam essa prioridade com as pessoas notadamente mais velhas, distinguidas pelos cabelos encanecidos. No meu tempo, criança embirrava, mas não embirrava muito. Havia limites de embirramento. Os pequenos escândalos infantis, em lugares não muito apropriados, eram resolvidos com algumas educativas palmadas (ou chineladas, a dependerem do tipo de aporrinhação). No meu tempo, Roberto Carlos, na direção do seu famoso calhambeque, mandava tudo pro inferno. No meu tempo, Waldick Soriano era uma espécie de Frank Sinatra nordestino, e forró e baião (dos bons) era com Luiz Gonzaga, Gordurinha e Jackson do Pandeiro, o rei do ritmo. No meu tempo, sem quaisquer preconceitos, branco era branco e negro era negro. Não havia essa história de gênero. Nada contra, mais que não havia, não havia. Mas isso tudo no meu tempo. Coisa da idade. Ainda bem que já estou com algum tempo. Mas, não é o caso, deixa isso pra lá.
No meu tempo, insisto, tinha sempre um quitandeiro bem humorado para nos atender. Chegávamos ao balcão da quitanda e perguntávamos: - Tem sabão Martins? E o quitandeiro, cheio de bom humor, num misto de provocação e gozação, respondia: - Não, tem cebola. E a gente, chateado, com o sol quente, daquele bem são-luisense, saía pela outra porta a procurar a quitanda mais próxima. Ainda assim, com todo esse sarcasmo, o quitandeiro era atencioso. Tinha sempre alguma coisa a dizer. E, nós crianças, a suportar as piadas. No meu tempo, conhecia-se de cor e salteado a formação da Seleção Brasileira. A famosa linha, que nunca sofreu uma mísera derrota: Zagalo, Didi, Vavá, Pelé e Garrincha. Os gols das memoráveis vitórias do escrete brasileiro eram ora de Pelé, ora de Vavá, ou Garrincha, que foi o grande astro da conquista da Copa de 62, no Chile. No meu tempo, nem sonhar ou ter o pesadelo de um escore contra de 7 a 1.
No meu tempo, as moças eram namoradeiras. Mas namoradeiras mesmo. Porém quietas. Nem tanto assim como se possa pensar que eram santas. Nem santas nem diabas. Namorava-se, e como! Nas janelas, nas praças, nos cinemas, nos bailes. Quando havia resistência da família, que não admitia o perfil nada recomendável do namorado, a confusão da rejeição era facilmente resolvida: a moça fugia com o inditoso namorado. E, pior, para a turma resistência, o casamento era realizado na delegacia de polícia, sob a batuta de um sisudo magistrado, que não deixava o desrespeito da fuga passar em vão. Sempre havia um quartinho na casa dos pais para albergar os infratores recém-casados. Depois, os netinhos, que vinham de cambulhada, que o pessoal daquele tempo não era de ferro e produzia com muita voracidade, resolviam os desentendimentos.
No meu tempo, as moças das lojas (e não eram tantas, até porque não havia shopping), eram atenciosas. Ah!, cansei de presenciar gente da minha família que, nas lojas, para comprar, mandavam descer prateleiras e prateleiras, e saíam deixando a vendedora a ver navios. Aí andávamos um bom pedaço e entrávamos em outra loja. Eu, precavido e com o temor da repetição da mesma cena, ficava distante, na porta, aguardando o desfecho da compra ou não compra. E a paciente vendedora ainda vinha deixar aquele cliente, que nada comprou, na porta da loja. Com um sorriso aberto e feliz nos lábios.
No meu tempo, a relação era fraterna. Nada a ver com a virtualidade de hoje. Evidente, não poderia ser de outra forma, os tempos são outros. O meu tempo era o meu tempo. Dizia-se: muito obrigado! Como vai? O Sr. quer o quê? Por favor! A Sra. precisa de ajuda? E se houvesse - e não havia - estacionamento prioritário, respeitavam-se, como gesto de civilidade, essas determinações. Dirão alguns apressados: bons tempos aqueles! Nem tanto, nem tanto. Havia outras carências. O bonde, já no seu estertor, descarrilava, e como?!. Os ônibus “davam prego”, e só havia dois fazendo a linha, enquanto um ia, o outro voltava. E táxi era um transporte de quem tinha algum dinheiro. Solução: andar a pé. Que alguns desafortunadamente diziam: andar a pés. No meu tempo, telefone era patrimônio de família rica, arrolado nos inventários, e os herdeiros disputavam com unhas e dentes.
Já nos tempos atuais, tempos de pomposas vitrinas em que se comemora o dia das mães, passava por uma loja, loja de bolsas. A vitrina chamativa, com produtos bem expostos e preços com os sempre 99 no final. Abri a porta de vidro, creio. Entrei. Estavam duas moças: uma sentada por trás do balcão, e a outra mais adiante. Lembrei-me, com o respeito que elas merecem, dos quitandeiros ou das moças das lojas do meu tempo. Dei alguns passos dentro da loja. E nada. As duas moças estavam embevecidas nos seus celulares. Não tiveram tempo sequer de levantar a vista e perguntar se eu queria sabão Martins, Andiroba, ou alguma das bolsas expostas na vitrina. Deu-me o lampejo de uma certeza: a venda ali era virtual. Eu, momentaneamente, não existia. De imediato, saí e fui em busca de outra freguesia. Como o grande poeta Vinícius, concluí: meu tempo é quando. Nem ontem, nem hoje, nem amanhã.
* Membro da AML e AIL.
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