As ruas da cidade amanheceram banhadas. Nas poças dágua, o reflexo da luz do sol, ainda encoberto por espessas nuvens, bem como das figuras de quem nelas se projeta. Mas pareciam alegres, como se estivessem sorrindo para gente. Não aquele sorriso aberto, desprendido, porquanto ainda estremunhado pelo ar preguiçoso do sono do amanhecer. Tal como saltimbanco se ia de um lugar a outro. Poucas pessoas se davam ao desafio de circular E dessas poucas, aventureiras de um destino que não podiam libertar-se, seguiam de um ponto a outro para vencer o desafio de superar todos os obstáculos. Traziam consigo numa das mãos a obrigatória proteção do guarda-chuva, de pano preto.
Aproveitando os respingos intermitentes, uma senhora, com ar sisudo, abriu um lado da janela e pôs o rosto para fora, para ver o tempo. Assoou o nariz, como se tivesse contraído algum passageiro resfriado, originário daquele tempo chuvoso. Olhou de um lado para outro. Fez um leve aceno de mão para um homem que por ali passava, protegido pelo chapéu de chuva. Em resposta, apenas balançou levemente a cabeça, voltando a saltitar de um lado a outro, para evitar as poças dágua enlameadas.
Não havia asfalto. Essa novidade ainda não chegara por lá. As ruas daquela cidade sempre receberam tratamento de piçarra, ou mesmo de barro vermelho. Cada período eleitoral, aparecia um benfeitor de ocasião. Propunha-se a resolver os graves problemas dos moradores. As suas propostas eram as de sempre: tapar os buracos que atormentavam os moradores e fornecer água, ainda que fosse de poço. Outros candidatos mais visionários, afirmavam aos crédulos e incrédulos necessitados desses serviços: na próxima administração do nosso amigo prefeito, diziam, com ares de verdade, todas as ruas serão asfaltadas. Boa parte acreditava. Enfim, era o jeito. A outra parte ficava como São Tomé, só vendo para crer. Passava a eleição, vinha o tempo invernoso e, com ele, os mesmos tormentos e, depois, as mesmas promessas.
Com todas essas intempéries, o leiteiro, carregando às costas o seu botijão de alumínio, vinha gritando da entrada da rua a venda do seu produto, medido com uma canequinha de litro ou meio litro. Homem madrugador, o seu rosto já perdera qualquer resquício do sono mal dormido. No seu andar pesado, não tinha qualquer preocupação com poças dágua ou com a lama. Vencia-as imponentemente, com a força rústica das suas pernas e o vigor físico do seu corpo, já que habituado com a luta diária do ganho pão. Por essa resistência, a conclusão inevitável que se chega é que Euclides da Cunha, esse profeta da eternidade nordestina, estava absolutamente certo: o sertanejo é antes de tudo um forte.
Mesmo com esses percalços, as ruas, banhadas pela chuva intensa da madrugada, aparentavam traços expressionistas de um desses quadros, que se costumam ver nos museus e que se olha e se olha e não se entende porque o seu autor não procurou dar uma dimensão artística menos complicada. É. Mas a arte expressa a transfiguração poética da realidade do ponto de vista criativo e da visão profética do artista, porque denunciadora de um momento que se estende no espaço e no tempo. Mas as ruas daquela cidade, não. Apenas precisam ser asfaltadas. Eis o toque poético da questão.
Devem estar-se interrogando: que ruas são essas e de que cidade são? São as ruas do amanhecer dos nossos sonhos. A gente vai vendo, vai lembrando que, em certo dia, nos levantamos bem cedo para compra do pão ou do leite e caminhamos pelas essas ínvias trilhas, evitando o resto do aguaceiro derramado na noite do dia anterior. Portas ainda fechadas. Poucos transeuntes. O nascer do sol, com os seus raios saltando das poças dágua e das vidraças. Às vezes, por força da barbárie humana, perde esse conteúdo poético. Foi numa rua assim, que um amigo fraterno foi brutalmente agredido. Pois é: ao pular uma poça dágua, uma insignificante poça dágua, não alcançou o outro lado e salpicou a calça branca de um insensato e inconformado transeunte. Agressivo, sem considerar as insistentes desculpas que lhe eram dadas com o esmero da educação, puxou de um punhal e varou-lhe o corpo. O sangue derramado avermelhou a interrogativa poço dágua.
O tempo ficou para trás, mas sempre se faz presente. Ainda hoje insisto: é melhor entender e amar as ruas com ou sem buracos e as lamas que lhes servem de ornamento provisório, que ser mal compreendido por um desses transeuntes que, enlameados por nossa falta de destreza circense, resolvam nos aplicar um desmesurado corretivo. Não devemos esquecer o velho brocardo popular: seguro morreu de velho e desconfiado ainda vive. Ninguém é sapo, para pular de um lado para o outro, mas não devemos dar colher de chá ao imprevisto. Todo cuidado pouco. Não é mesmo?
* Membro da AML e AIL.
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