Num dos livros de antologia de crônicas de Lima Barreto, há uma bem atual, cujo título é O novo testamento. O romancista de Triste fim de Policarpo Quaresma, de forma satírica, nos primeiros parágrafos, esclarece aos seus leitores por que se propõe candidatar-se a deputado: - Eu também sou candidato a deputado. Nada mais justo. Primeiro: eu não pretendo fazer coisa alguma pela Pátria, pela família, pela humanidade. Um deputado que quisesse fazer qualquer coisa dessas, ver-se-ia bambo, pois teria, certamente, os duzentos e tanto espíritos dos seus colegas contra ele. Contra as suas ideias levantar-se-iam duas centenas de pessoas do mais profundo bom senso. Assim, para poder fazer alguma coisa útil, não farei coisa alguma, a não ser receber o subsídio. Eis aí em que vai consistir o máximo da minha ação parlamentar, caso o preclaro eleitorado sufrague o meu nome nas urnas. Recebendo os três contos mensais, darei mais conforto à mulher e aos filhos, ficando mais generoso nas facadas aos amigos.
Conclama, no final, aos possíveis eleitores: Às urnas.
Essa crônica foi publicada no Correio da Noite, em 16/1/1915. Há mais de cem anos. Os parlamentares, com raríssimas exceções, continuam a, incólumes, receber seus subsídios, com grandes acréscimos, sob o rótulo de verba de gabinete, e dando profundas facadas aos seus amigos, ora denominada caixa 2, ora, numa linguagem mais pejorativa, propina.
Nesse mar turbulento de verdades, escondidas durante todo esse tempo, desde o descobrimento do Brasil, essas "facadas aos amigos' só vieram à tona, porque visavam atingir segmentos da política que precisavam ser demonizados, com o fim específico de serem alijados definitivamente do acesso ao poder. Mas, o tiro saiu enviesado e, com efeitos colaterais inimagináveis, atingiu o peito de muitos figurões do establishment, que já estavam se preparando para galgar os degraus do fama, seguindo a vereda aberta pelo golpista Temer, presidente envolvido em caixa 2 e em graves negociatas, conforme dizem as famigeradas delações, de muita credibilidade para uns e de nenhuma, para outros, a depender do partido ou da posição no (des)governo do vice, espécie de teleguiado dos grandes interesses empresariais nacionais e multinacionais.
Não é por menos que o colunista Bernardo Mello Franco, em texto publicado na Folha, em 26/3/2017, p. A2, sob o titulo De volta para o futuro, faz referência à manchete do Jornal do Brasil, de 2 de dezembro de 1993, em que fora divulgado o resultado de uma CPI, que desvendava um esquema de corrupção envolvendo empreiteiras e políticos. O rumoroso caso assombrou o Brasil inteiro. Só foram punidos os deputados chamados de "anões" do orçamento, formados por parlamentares de baixa estatura e de pouca expressão política. Conclusão simples: Lima Barreto, desde 1915, quando divulgou o seu manifesto-crônica, sabia que, além dos subsídios ou algo mais, as facadas aos amigos sempre existiram, como prática política ortodoxa, porém desonesta. Tanto que, embora alguns conservadores insistam em omitir, todos os partidos políticos estão envolvidos. Alguns mais; outros menos. Mas isso não tem relevância. Não existe honestidade a ser medida em percentual. Ou é, ou não é.
Também não existe sociedade sem crime. O delito faz parte do convívio social. Corrupção é crime. Deve ser prevenida e reprimida, criando-se mecanismos para ser reduzida ao mínimo. O ser humano, na essência da cobiça, é a causa da corrupção, nos seus dois polos: corromper-se e ser corrompido. Mas nem por isso devemos cair na asneira de substituir um sistema democrático, de ativo exercício de cidadania, por outro de viés autoritário. A direita, aproveitando-se do momento trágico em que vivemos, com a sua efetiva participação nas trapaças, tanto que só na última lista do inquérito Lava Jato estão indiciados 29 senadores e 34 deputados federais, pela prática de corrupção, vem adotando uma postura reformista de desmonte dos direitos sociais em favor do sistema plutocrata, enraizado desde as capitanias hereditárias. Nessa trilha perigosa, com o incenso midiático, surgem as figuras de Doria, prefeito de São Paulo, e Jair Bolsonaro, político militar com posturas conservadoras e totalitárias. Doria faz questão de apresentar-se como a bela e fera do conservadorismo. Não esconde estar aliado ao eleitorado da extrema direita, mas, ao mesmo tempo se faz de bonzinho e cruel, para cativar os menos informados e para não perder o seu público reacionário. Na greve do dia 28 de abril, tachou os grevistas de vagabundos e preguiçosos. E foi elogiadíssimo por Temer, que lhe telefonou para parabenizá-lo pela sua postura de combate ao movimento social reivindicatório. Já Bolsonaro vem se notabilizando pela pequenez ideológica, angariando adeptos, porque há sempre os que gostam de uma ditadurazinha, ou ditabranda, como já apelidaram, desde que seus interesses sejam preservados. As entrevistas dele fazem Hitler exaltar-se no túmulo, pedindo a Deus que esqueça o holocausto e o ressuscite para fazer companhia a esse aliado do século XXI, que faz as pregações mais indignas. Volto a Lima Barreto. Conclamo: vamos às urnas! Porque esse Congresso que está aí perdeu a sua legitimidade. Não se pode deixar que o futuro dos nossos filhos seja decidido por delinquentes, que prestam serviço para uma plutocracia viciada em dar facadas aos "amigos".
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