Temos por hábito esquecer esse determinismo. Quem vive, sucumbirá, partindo desta para outra dimensão. Não se sabe se para melhor ou pior. É inevitável. Um dia será só saudade. Alguém já disse que só em duas situações somos iguais: perante a lei (com o que ouso não concordar, porque nem sempre a igualdade se efetiva por ela) e a morte, que é o destino de todos nós, alcançando sem distinção homens ou mulheres, ricos ou pobres, negros ou brancos, bandidos ou honestos, honrados ou desonrados. Deus teve o cuidado de dizer, ao flagrar Adão na desobediência: Com o suor do teu rosto comerás o teu pão até que retornes ao solo, pois dele foste tirado. Pois tu és pó e ao pó tornarás. Ao proferir essa milenar sentença, condenou o homem ao trabalho, embora haja muitos malandros por aí, e também à morte, porquanto vindo do pó ao pó retornará, incluindo nesse édito condenatório a mulher, que, ressalve-se como defesa, não veio do pó, mas da costela do homem, que precisava de uma companhia, já que se encontrava numa solidão de dar dó naquele paraíso sem graça. Comido o fruto proibido (que fruto?), retirado pela curiosidade feminina da árvore, os nossos antecessores despertaram para realidade do mundo, que de lá pra cá, perdeu as suas essências paradisíacas e, ainda mais, tiveram que usar folhas de parreira para encobrir as suas vergonhas, como tempos depois, assim as chamou Pero Vaz de Caminha, o escrivão da frota de Cabral.

Os romanos tinham essa percepção determinista. E, quando um general chegava da guerra, vitorioso, para ser condecorado pelo Senado, na entrada da cidade, subia numa biga, carro de combate puxado por dois garbosos cavalos, para ser conduzido ovacionado pela plebe. Ao seu lado, a pé, ia um escravo, que, de tempo em tempo, subia na biga e proclamava no seu ouvido: “Lembra-te que és mortal”. Isso para que o general, a ser reverenciado pela vitória das guerras de que participara no comando do seu exército, não pensasse que era um deus e quisesse usurpar o poder, que, ao mesmo tempo, era temporal e divino.
Se esse costume romano retornasse aos nossos dias, quantos generais com estrela ou sem, entenderiam que são mortais e, embora condecorados por seus feitos, compreenderiam que a essência do poder é servir e não servir-se dele.
Sobre o homem, independentemente de sua mortalidade, tudo já foi dito. Aristóteles o chamou de animal político, no sentido de ser racional e social. Até aí tudo bem. Durante todos esses séculos, ninguém teve a coragem de contestá-lo. De Aristóteles até os nossos dias, a frase do filósofo de Estagira se transformou num dogma. O homem, em que pesem as suas circunstâncias, continua sendo um animal político. Mas, mesmo respeitando Aristóteles, a grande definição do homem foi dada por Fernando Pessoa, não um filósofo, mas um poeta, que o definiu afirmando: O homem é um cadáver adiado. Parece que Pessoa não nega o que disse Aristóteles. O poeta português viu no homem um outro significado determinista, previsto na sentença que o condena a retornar ao pó, donde tudo se originou. Talvez seja por isso que Gonçalo Tavares, também poeta lusitano, na simplicidade de um dos seus versos, poetiza dizendo-nos que “o homem nasce da terra como nascem as plantas”. Ou morrem na terra, como morre qualquer animal. Pela sentença que nos condenou a retornar ao pó, as páginas de nossas folhas diárias têm nos alertado para essa fatalidade que nos vitima a todo instante.
Abro o jornal e leio: Jovem é encontrada morta na comunidade de Santa Catarina de Sena. Consta, ainda: Carol, de 19 anos, um filho, levou um tiro na cabeça, à queima roupa, só por ter saído de casa por volta das 18h30min, dizendo ao pessoal da família que voltaria logo, porque iria arrumar a bagagem para viajar para o Rio de Janeiro. Não lhe deram a oportunidade desse sonho. O tiro na cabeça foi de uma fatalidade brutal. Seu corpo estendido de costas sobre o pó para onde terá que retornar. Cumpre-se, de modo apressado, para uma jovem de 19 anos, com um filho, a sentença da nossa origem e fim. Do pó do vieste ao pó retornarás. Não há como escapar.
Bem do ladinho da página, a notícia corriqueira. De todos os dias. A polícia prende casal com mais de três quilos de maconha. Ainda bem que, independentemente dessas fatalidades cotidianas, o Vasco ganhou do Flamengo. E mais uma vez. Os mais otimistas afirmam que tá ficando chato. Mas apressam-se em acrescentar:  - Para os flamenguistas. Esse é o sentido lúdico da vida: ora se perde, ora se ganha, ora se vive, ora se morre. A lembrar-nos que somos essencialmente mortais.