Já faz algum tempo que saí daqui desta nossa aprazível cidade de São Luís, cercada e banhada de águas por todos os lados, para uma aventura passageira no Rio de Janeiro. A viagem se transformou num grande desafio. Sabia apenas que existia o Rio nas páginas de revistas e jornais. A nossa televisão, ainda incipiente, era na base do tape, a transmitir velhos programas de cinco ou seis meses passados. Mas havia alguns programas locais, produzidos com os esforços e o talento de nossos artistas da terra. Ouvia-se falar de Chacrinha e de Sílvio Santos, porém, aqui e acolá, víamos tape de Flávio Cavalcanti, com os seus trejeitos, irreverências e rabugices, J. Silvestre, com o céu é o limite, recheado de perguntas e respostas, ou Blota Jr., com esta noite se improvisa, tendo as presenças de Caetano, Chico Buarque, Simonal, Milton Nascimento e outros grandes nomes do cenário musical brasileiro.
Nessa viagem para o Rio, descontei muitos dos meus pecados, por aquele tempo, já bastante acumulados, para amealhar outros que seriam adquiridos na minha estada na então Cidade Maravilhosa. De fato, maravilhosa. E muitos desses novos e mais modernos pecados passaram a integrar o meu acervo particular de desacertos, ora compreendidos e perdoados, ora esquecidos, mas nem sempre com o devido perdão. O tempo ajudou a apagar boa parte desses deslizes; outros vieram substituí-los. Algo muito natural de qualquer ser humano. De outro modo, não é ser humano; é-se algum santo personificado, de forma equivocada, em carne e osso, fazendo passar por gente, ou mesmo disfarçado de demônio, para enganar alguns bestas. Ah!, bolas, como há enganadores.
Quando cheguei ao Rio fui morar, provisoriamente, perto de um dos berços do samba: Madureira, onde reinavam (e ainda reinam) duas escolas de samba: Portela e Império Serrano. 1970, Portela, a compeãníssima de muitos carnavais, conquistava mais um título naquele ano com o samba-enredo Lendas e mistérios da Amazônia, no qual se destacam estes belíssimos versos: A lua apaixonada chorou tanto / Que do seu pranto nasceu o rio e o mar. No ano seguinte, em 1971, Salgueiro balançava as arquibancadas e todas as festas populares, incluindo os blocos de rua, com o inovador samba-enredo, de Zuzuca, Festa para um rei Negro, onde se sobressai o refrão: Ô lê, lê, ô lá, lá / Pega no ganzê / Pega no ganzá. Um samba composto com poucos versos, centrado num refrão apelativo, bem ao gosto popular, num ritmo de marcha. Ganhou o carnaval e deixou uma marca inovadora que ficará para história da nossa festa mais popular. Em 1972, Portela vem de Ilu Ayê. Não consegue ganhar. A grande vencedora é o Império Serrano, ao homenagear a Pequena Notável Carmem Miranda com o samba-enredo Alô, alô, taí Carmem Miranda. Dele se destaca essa estrofe inicial, de excelente estrutura melódica: Uma pequena notável / Cantou muito samba / É motivo de carnaval / Padeiro, camisa listrada / Tornou a baiana internacional. Esse samba-enredo foi imortalizado na voz de Elis Regina, assim como o foi Exaltação a Tiradentes, de 1949, de autoria de Mano Décio da Viola e outros compositores, em que os seus criadores, na primeira estrofe do samba, fazem um retrato do herói da Inconfidência mineira: Joaquim José da Silva Xavier /Morreu a 21 de abril / Pela Independência do Brasil / Foi traído e não traiu jamais / A Inconfidência de Minas Gerais.
Mas um dos sambas que mais me encantou, embora não tivesse ganhado o carnaval, foi o de 1974, da Mocidade Independente de Padre Miguel, por muito tempo comandada pelo bicheiro Castor de Andrade. O samba-enredo é: A festa do divino. Uma referência temática aos festejos do Maranhão. Trata especificamente da festa do Divino Espírito Santo, sintetizada em versos que falam dessa nossa manifestação religiosa, que vem vencendo os séculos. Diz o sambista: Delira meu povo / Neste festejo colossal / Vindo de terra distante / Tornou-se importante e tradicional / Bate tambor, toca viola / A bandeira do divino / Vem pedir a sua esmola. E na parte final, dá ênfase ao badalar do sino, que anuncia a coroação do menino. E conclui fazendo referência a uma figura que sempre alegrou as nossas festas populares, os largos em comemoração aos santos da religiosidade católica, ou as nossas feiras. É o leiloeiro: - Leiloeiro faz graça / Com uma prenda na mão / A banda toca com animação. Pois é. Não consigo esquecer a figura do leiloeiro que aparecia pela Vila Macaúba. Armava próximo à feira a sua mesa, repleta de prendas para fazer o seu leilão. Os mais aquinhoados ficavam em torno na ânsia da disputa entre si. O leiloeiro provocava: - Quem dá mais? E os lances eram ofertados com a volúpia da disputa, e não pelo valor das prendas disputadas. Havia um sentido lúdico, aliado a uma esperteza do leiloeiro de fomentar o embate. Dinheiro ofertado, dinheiro depositado na mesa. Quanto mais, melhor. No Mercado Central também faziam ponto os leiloeiros. Nos largos das igrejas, eles estavam lá. São profissionais nômades que andam por esse mundo afora angariando meios para sobreviver. E sempre encontram quem os subvencione. Enfim, como na festa do divino, o leiloeiro faz graça com uma prenda na mão e a bandinha da festa (ainda existe?!) toca com animação. 

* Membro da AML e AIL.