Fabiane Maria de Jesus, 33 anos de idade, dona de casa, mãe de dois filhos, foi barbaramente espancada por um grupo de pessoas, no bairro Morrinhos, periferia de Guarujá, São Paulo. Os carrascos, que a julgaram e lhe aplicaram a pena de morte, acusaram-na de ser seqüestradora de crianças para rituais de magia negra. Estavam errados. O julgamento e justiçamento sumários de Fabiane, com requinte de extrema crueldade, abalou todos aqueles que têm mínima consciência cristã e de civilidade. Num outro evento, também bastante rotineiro, PM evita assalto, que estava sendo realizado numa casa lotérica no Turu, e um dos bandidos morre no confronto; outro foi baleado e levado para um hospital. E mais recentemente, no acervo de notícias semelhantes, adolescente, de 14 anos de idade, é linchado, no Jardim Tropical I, sendo surrado até a morte. Segundo relatório da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Maranhão, esse jovem delinquente, ao tentar roubar uma moto, foi cercado por mototaxistas, rendido, amarrado a um poste e agredido até morrer. Pois bem. Seguindo esses extremos, a Polícia Militar de São Paulo está matando como nunca. Só no mês de janeiro, foram 76 pessoas assassinadas, sem que os condenados à morte tenham sido submetidos a julgamento. A execução da pena é sumária,
O coronel Telhada, atualmente vereador, em São Paulo, pelo PSDB, nessa linha de matança, justifica a prática: "Pra mim, quanto mais vagabundo for para o saco, melhor." Esse coronel comandou a famigerada Rota, e o índice de mortes, patrocinadas por ele, quando comandava o patrulhamento, foi considerado alarmante. Pelos seus feitos macabros, foi eleito vereador, mantendo o mesmo discurso repressivo, de que a solução do crime (e da criminalidade) é matar bandidos. E a polícia de São Paulo vem cumprindo essa doentia missão, copiada por outras, sem alcançar o êxito profilático de limpeza da sociedade desses contumazes e insistentes delinquentes. Muitos pensam e acreditam que essa seja a solução salvadora. Vivemos, assim, o drama do discurso retributivo taliônico, aplicando-se, à margem das normas vigentes, as regras do antiguíssimo Código de Hamurábi: violação por violação, olho por olho, dente por dente.
É mais cômodo, porquanto atenderia mais aos clamores desse discurso retrógrado, falar nesses barbarismos, como único remédio para combater a criminalidade, do que as teses iluministas defendidas por Cesare Beccaria, em Dos delitos e das penas. Repudiando essas práticas, a Constituição da República Federativa do Brasil (repito: da República do Brasil) elenca as espécies de sanções criminais, a serem aplicadas àqueles que cometem crime. A pena tem sentido retributivo, por se sustentar no modelo iluminista do contrato social, representando uma reparação pelo mal causado à sociedade. Essa noção vem de Rousseau, Voltaire e outros pensadores do Século XVIII. Distinta do delito, embora consequente, constitui a pena como única resposta jurídica possível em face do reconhecimento da existência do crime. No entanto, o poder de punir é um direito/dever do Estado, como condição indelegável da vida em sociedade.
Não é de todo desnecessário dizer-se que a Constituição da República do Brasil, no inciso XLVII do art. 5.º, onde se encontram os direitos e garantias fundamentais, não admite as penas consideradas atentatórias à dignidade da pessoa humana, contemplando, assim, o princípio da humanidade das penas. Com fundamento nessa norma, não haverá pena de morte (salvo em caso de guerra declarada), perpétua e as que redundem em extremados sofrimentos do condenado. Além dessas restrições, impõe a individualização das penas e determina que devem ser adotadas, entre outras, as penas privação ou restrição da liberdade (prisão), perda de bens, multa, prestação social alternativa e suspensão e interdição de direitos.
As ideias iluministas de Beccaria servem de fundamento para as regras constitucionais que proíbem penas cruéis, infelizmente defendidas e utilizadas na prática cotidiana, em desrespeito às garantias contidas na Carta Magna. Beccaria deveria voltar aos bancos de escola. Ler e estudar o Marquês de Beccaria é uma necessidade bíblica. Ele ensina: "O rigor do suplício não é que previne os delitos com maior segurança, porém a certeza da punição. (...) O direito de castigar não pertence a qualquer cidadão em particular; é das leis, que são o órgão da vontade geral."
Não há direito sem sanção. Como não há ordem jurídica sem coerção. O Estado, queiramos ou não, firmado no devido processo legal, é a única fonte sancionadora. Pena não é vingança. Quando assume essa anomalia, o pacto social é quebrado, invertendo-se os valores, desumanizando-se os critérios e, em consequência, contribuindo-se para elevação da criminalidade. Engana-se quem pensa de outro modo. Não é apenas questão de direitos humanos. E também é. Mas é de valoração do ser humano como pessoa que, nessa condição, deve ser tratado e respeitado. Não havendo respeito, ninguém se respeita. Muito menos aquele que infringe a lei. O justiçamento não é a solução. Nunca foi no passado. Não será no presente. Nem será no futuro. A história das penas é a história da humanização do homem. Voltar ao passado é um equívoco, porque passamos a usar os mesmos valores negativos do delinquente. Um grave erro.
Edição Nº 15000
Justiceiros e Justiçamentos
Aureliano Neto
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