João Ubaldo Ribeiro, era eu o leitor de suas crônicas quando me encontrava em São Paulo em sucessivas visitas que faço aos meus filhos. Li-as, ou em O Globo ou em o Estadão. Não o considerava essencialmente cronista, isso no sentido literário do termo, como fora Rubem Braga ou Paulo Mendes Campos, grandes mestres dessa arte da narrativa curta. Mas, paradoxalmente, muitos textos dele eram excelentes, por serem provocativos, pelo tema enfocado. Tive oportunidade de ouvir muitas das suas inteligentes entrevistas, recheadas de ironia, infelizmente não divulgadas nos canais de TV abertos. Só nos alternativos, como Arte 1, Cultura, TV Brasil. A TV Brasil foi a que fez o melhor trabalho após o seu falecimento, ocorrido no dia 18 de julho, aos 73 anos de idade. O noticiário apenas declarou que João Ubaldo morreu de embolia. Sabia que ele andava um pouco adoentado. A idade é, independentemente de qualquer mal que nos acometa, a grande doença que temos que enfrentar. Faço um breve parêntese. Lendo um livro - não me lembro qual - retirei essa pequena e grave reflexão de um personagem: “- embora eu realmente não tenha nada que precise ser curado. Nada, não é mesmo? Quero dizer, exceto a idade avançada. Infelizmente a idade avançada não pode ser curada, ela avança mais ainda!” Doente ou não, a idade é inexorável. Se não avança, somos alcançados pela tragédia da morte. Para alguns, ainda que minoria, o passo para uma nova vida.
Numa das entrevistas de João Ubaldo, justamente no documentário da TV Brasil, ele falava sobre o talento e a vocação. E dizia, com aquela voz grave e metálica: - Há pessoas que têm talento e vocação; outras têm talento, mas não têm vocação. Explicava a sua tese, fazendo referência a um amigo, que, por respeito, não citou o nome. Era um grande ator, extremamente talentoso, porém sem vocação. Não seguiu a carreira que o consagraria. Preferiu ficar comodamente num emprego do Banco do Brasil. Concluía: assim é o escritor. Muitas vezes talentoso, mas sem vocação para o exercício exclusivo dessa atividade, ficando restrito a uma produção aqui e outra acolá. Achei essa sua tese interessante. Conversei sobre isso com o meu amigo Lourival Serejo. A gente – eu e ele – fica pensando em deixar toda essa história de ser profissional das letras jurídicas e dedicar-nos apenas àquilo que nós gostamos de modo obsessivo: ler e escrever. Em que pese, o tempo passou. E ficamos pensando: se tivéssemos unido o nosso, ainda que pouco talento, com vocação, a vida nossa seria diferente. Como admiro o poeta Nauro Machado. Nessa concepção de João Ubaldo, une talento e vocação. Nauro é apenas poeta. E o apenas não tem sentido de restrição ao poder criativo. Ao contrário, dá um sentido de dedicação sacerdotal, como se ele fosse um profeta do seu tempo.
Bem. Tudo mundo sabe que João Ubaldo deixou uma obra não tão vasta, em quantidade, porém imensa em qualidade estético-literária. Não sou crítico. Sou apenas leitor. E isso já me satisfaz. Sem descer a especulações estéticas, para mim, Sagento Getúlio, foi o seu grande romance, assim como, com referência à Gabo (Garcia Marquez), a obra que me encantou foi A crônica de uma morte anunciada, embora tenha lido, e ainda não relido, Cem anos de solidão. O romance de estreia de Ubaldo Ribeiro foi Setembro não tem sentido, um titulo sugestivo e, como próprio nome a ele dado, provocativo, uma vez que discute as questões de brasilidade decorrentes da comemoração da data de nossa independência, utilizando como contraponto dois personagens com temperamentos antagônicos. Como toda obra literária, reflete momentos vividos pelo seu criador, de conotação biográfica.
A última crônica de João Ubaldo, publicada antes que, na expressão poética de Hilda Hilst, partisse em busca do silêncio absoluto, foi, como sempre, publicada em vários jornais (Globo, Estadão etc.). Faz uma contundente crítica ao leviatanismo do Estado na vida de cada de um nós, e o faz ironizando a partir, alegoricamente, das regras para uso do papel higiênico. Com sarcasmo, deu à crônica o título de O correto uso do papel higiênico. O papel higiênico é apenas o ponto de partida para João Ubaldo, de forma irônica, criticar os excessos de regras que regulam a nossa liberdade. Brincando, mas a sério, ao tratar da desnecessária lei da palmada, que teve Xuxa, como exemplo edificante de mãe e desvairada paladina, o baiano de Itaparica tece o seguinte comentário: “Ainda é cedo para avaliar a chamada lei da palmada, mas tenho certeza de que, protegendo as nossas crianças, ela se tornará um exemplo para o mundo. Pelo que eu sei, se o pai der umas palmadas no filho, pode ser denunciado à polícia e até preso. Mas, antes disso, é intimado a fazer uma consulta ou tratamento psicológico. Se, ainda assim, persistir em seu comportamento delituoso, não só vai preso mesmo, como a criança é entregue aos cuidados de uma instituição que cuidará dela exemplarmente, livre de um pai cruel e de uma mãe cúmplice. Pai na cadeia e mãe proibida de vê-la, educada por profissionais especializados e dedicados, a criança crescerá para tornar-se um cidadão modelo. (...) O egoísmo dos pais, prejudicando a criança dessa maneira desumana, tem que ser coibido, nada de aborrecimentos ou brigas em casa, a criança não tem nada a ver com os problemas dos adultos, polícia neles.” Esse é o João Ubaldo, que fazia da crônica, o palco da sua ironia para denunciar, com Inteligência e perspicácia, as nossas arrogâncias. Sentiremos muito a sua falta, embora esteja sempre fazendo as suas caminhadas por Itaparica, sua cidade berço que tanto amava e o inspirou na construção da sua obra literária.
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