Muitos Joões passaram pela minha vida. Quando não estiveram em carne e osso, fizeram parte das minhas fantasias literárias, como no belíssimo poema de Carlos Drummond de Andrade, que inicia a saga amorosa, ressaltando o amor de "João que amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim..." Todos se amando, e o João poético faz o trajeto inicial dos amores que se sucedem. Há João em todos os sentidos: João Maria, Maria João, João José, José João, João das Dores, João das Graças, João da Baiana, o sambista João do Vale, que saiu descalço de Pedreiras para o mundo. São muitos e tantos Joões. Alguns santos, como São João, outros nem tanto.
Entre a minha infância e adolescência, convivi, no início da minha formação, com um João: meu tio João. Com ele aprendi valores fundamentais da vida: saber viver alegremente com as pessoas, valorizar a família, ter a mesa farta, embora não fosse rico nem pobre, viver a vida com espontaneidade, sem ser hedonista, e o amor à música. A nossa casa tinha a música como entretenimento essencial. Sábado e domingo eram os dias dos grandes concertos musicais: Francisco Alves, Nelson Gonçalves, Orlando Silva, o grande sambista Roberto Silva, Ângela Maria, Dalva de Oliveira, Emilinha Borba, Marlene e as orquestras que faziam sucessos, como a de Severino Araújo e a Tabajara, além de instrumentistas como Dilermando Reis, Jacob do Bandolim e Poly. Eram muitos. A mente os busca no tempo e os encontra ainda com o seu som vibrante, a ainda reclamar audiência. Dalva de Oliveira e Herivelto Martins, em série especial de TV, fizeram um sucesso consagrador, a sinalizar que a arte é imperecível, não podendo ser medida pelo tempo.
O tio João me abriu a sensibilidade para música. Sou daqueles que não pode viver sem ela. Na minha casa, no meu trabalho e no carro, estou sempre a ouvir música. Quaisquer delas. Da clássica até a que se encontra no outro extremo: a bem popular. De Luiz Gonzaga, Waldick Soriano, Ary Barroso, Caymmi, Vinícius de Moraes, Tom Jobim, Chico Buarque de Holanda, chego aos meus intérpretes: Nelson Gonçalves, Roberto Silva, Agostinho dos Santos, Dalva de Oliveira, Maria Creuza. Maria Betânia, Clementina de Jesus, que dão à arte uma dimensão próxima do divino. Isso mesmo: a arte é divina. Deus escolhe, com a Sua infinita sensibilidade, quem tem o dom de ser artista e dá a todos nós o prazer de usufruir suas criações.
João do Vale. O primeiro contato que tive com João do Vale, esse bardo das grandes canções sertanejas e urbanas, foi pelo do rádio. Tocava-se insistentemente nas rádios maranhenses a música Pisa na Fuló, um dos seus maiores sucessos. A intérprete: Marinês. O maranhense dizia com orgulho: - Essa música é de João do Vale. Depois, já com idade entre nove para dez anos, tinha por lazer ir ao programa dominical na rádio Difusora, na Magalhães de Almeida, comandado por Lima Jr., e intitulado de O Domingo é Nosso, onde os artistas locais se apresentavam e, às 12 horas, havia uma atração de fora: Quando os astros se encontram. Num dos programas, apresentou-se um conjunto sertanejo de Pernambuco, que mostrou, em primeira audição, a música de João do Vale Todos Cantam a sua Terra, uma espécie de hino do Maranhão. Nela João do Vale canta nossas belezas, fazendo o registro do grito do jornaleiro e do vendedor de derressol, um doce de coco que era gostoso e muito popular. .Mais tarde, em Imperatriz, mantive contato pessoal com João do Vale. Primeiramente, num show na AABB, e, depois, em 1982, acompanhei-o durante uns dois dias e o recebi, para almoçar, na minha casa. João estava acompanhado de Miúcha, irmã de Chico Buarque.
João do Vale definitivamente está na história da música brasileira. Essa afirmação não deixa de ser um lugar-comum, mas precisa ser feita. A sua origem pessoal está, de certa forma, registrada no poema musicado Minha História, de sua autoria e R. Evangelista, em que referencia a sua infância de vendedor de pirulito e arroz-doce, e ressalta que, enquanto sobrevivia como vendedor, seus colegas iam estudar, e ele conclui que "hoje todos são doutô, eu continuo João ninguém", e, na sua sensibilidade poética, João do Vale diz que os amigos se sentem felizes com os seus baiões, porém, denuncia a situação de desamparo dos seus companheiros que não estudaram, e o pior, nem sabem fazer baião. O poema longe de ser uma lamúria; é a história de muitos brasileiros.
Nos anos 70, depois do show Opinião, ressurge João do Vale com a música Matuto Transviado, imortalizada na interpretação de TIm Maia, como Coroné Antônio Bento, que mostra um João mais pop. Em conversa, a ele perguntei: como fazia suas músicas, já que não tocava nenhum instrumento. Respondeu: - Vem. Vou fazendo.
João do Vale imortalizou-se nos seus poemas e canções, que ficaram entre nós como Todos Cantam a sua Terra, de Teresina a São Luís, Pisa na Fuló, Peba na Pimenta, Estrela Miúda, O Canto da Ema, Carcará, A Voz do Povo, samba que fez com Luiz Vieira, que, ao lado de Carcará, o desnudou artisticamente para o mundo. João, um maranhense que saiu de Pedreiras, que andou descalço pela rua da Golada, vendedor de pirulito e de arroz-doce, ajudante de pedreiro, que, com a arte de poetizar suas canções, nos fez e faz feliz de ouvi-las como se fossem as mais sublimes e puras orações. Enfim, João Pisa na Fulô, João Peba na Pimenta, João do canto da Ema, dos pés descalços, camisa aberta, voz rouca, João, o poeta do povo.
De parabéns o musical do Artur Azevedo. Excelentes artistas e uma direção de extraordinária qualidade. Apenas um detalhe, não se trata de ser ranzinza. O espetáculo é excelente, repito. Mas a cena de João com o copo cambaleando não é boa. Passei uns dois dias com João do Vale, ele sempre bebendo, mas não cambaleava. Apenas alegre. Outro detalhe: reduzir um pouco a parte mórbida da sua morte. João, o poeta do povo, é só música. A morte foi apenas um acidente da vida. O artista continua vivo. Eterno.
* Membro da AML e AIL.
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