Na véspera, pelos inúmeros destaques, fora um dia de muitos crimes. Isso nos leva à grave conclusão: o crime está cotidianizado. Ou os jornais os estão cotidianizando. Não sei. Sou um tanto socrático. Nada sei, ou só sei o suficiente para ir levando a vida. Mas... Peguei os jornais, para ter uma ideia de como as coisas estão indo. Nada de diferente. Repetindo a expressão hamletiana: há algo de podre no reino da Dinamarca. A página policial cheia de tragédias. Vejamos: Ladrão assalta ônibus; Traficantes são presos com crack; PM captura duas pessoas com revólver calibre 38. E esta manchete que induz ao medo: 35 mortes violentas registradas em 15 dias na grande São Luís. No chão, de bruços, o corpo de uma vítima dessas atrocidades cotidianizadas. Um menino imberbe, com os braços esparramados, em cruz, com o rosto impassivo, possuído pela brutalidade da morte. Pensei, inquieto, 35 mortes. Vão precisar de uma imensidão de cemitérios, para o descanso eterno dos mortos desse holocausto. E não sei por que me lembrei de Quintana: “A morte deveria ser assim: / um céu que pouco a pouco anoitecesse / e a gente nem soubesse que era o fim...” Mas ela está em cada página dos jornais. Não há como evitá-la. Há uma necessidade de vivê-la tragicamente, embora com outros atores, que fazem a cena diária de morrer reiteradamente, com algumas mudanças de enredos em cada tragédia.
No palco desse espetáculo, morre João Batista. Aliás, deve ser dito: a notícia do jornal diz que um homem, identificado como João Batista, morreu após ser eletrocutado em uma cerca. O título da matéria chega ser inusitado: Ladrão é eletrocutado ao tentar roubar galinhas. O fato incomum esclarecerei no final. Na notícia, esse complemento: de acordo com informações, a vítima (o ladrão e não o proprietário das galinhas) era acostumada a roubar galinhas, mas desta vez se deu mal. O caso aconteceu na madrugada do dia 14, domingo, quando o suspeito (no caso, o morto) entrou em um quintal para levar algumas aves e, ao sair, ficou preso na cerca que estava eletrificada. João Batista levou uma forte descarga elétrica e morreu no local. Nosso João, que não é o santo precursor do Filho e muito menos santo em qualquer outro sentido, teve a desdita de não perceber a cerca eletrificada, nela se emaranhando e vindo a ser mais uma vítima dessa prática insana de defesa do patrimônio, que os criminalistas chamam de ofendículos, a caracterizar a legítima defesa pré-ordenada. Se pode ou não ser punida, deixo isso por conta das chamadas autoridades competentes, que, com certeza, como se trata de uma vítima que tentava subtrair patrimônio alheio, devem fazer uma ampla, profunda e séria investigação para apurar todas as circunstâncias de sua morte.
Não se sabe quantas galinhas João Batista já subtraíra, ou que estava na iminência de furtar, já que a cerca elétrica não permitiu que concluísse o furto, intitulado de roubo. A nota do jornal se refere a galinhas. No plural. Então, era mais de uma galinha. Para sacrificar a vida, como fez João Batista, vamos chegar a um acordo de que eram três galinhas. Bem.Três penosas já representam alguma coisa, a exigir certo sacrifício pessoal, incluindo a própria vida.
Mas nessa história toda, aparece o inusitado. Não a morte na cerca eletrificada. Esse fato é mais ou menos corriqueiro e tem contribuído para tirar a vida mesmo dos que não são tão amigos do alheio. Às vezes, mata até alguém da família, que, sempré-aviso, morre tragicamente por desconhecer a força letal do choque desses ofendículos, que têm finalidade de pegar ladrão e terminam por causar efeitos colaterais, como dizem os especialistas em logística, matando quem nada tem a ver com o fim inibidor desses artefatos.
O inusitado está obviamente na notícia, a chamar a nossa atenção pelo contraste da figura do ladrão e o mundo mais sofisticado em que vivemos. O incomum é o ladrão de galinhas. Personagem hoje de raríssimacitação no noticiário policial. Ora, depois que galinhas deixaram os nossos protegidos quintais e passaram a ser produtos de granja, a figura do ladrão de galinhas virou démodé, perdeu a sua essência de glamourosa, até porque ser ladrão de galinhas era uma forma de depreciar o exercício mais refinado da atividade de afanar, em que se fazia uso dos mais estratégicos meios para apropriar-se do alheio. O ladrão de galinhas, embora gozasse de certo glamour nos nossos bairros mais humildes, não teria o status que o credenciasse, por exemplo, nos dias atuais,em que roubar celular goza de um imenso prestígio. Ser ladrão de celular é tão importante, que tem gente que dá a sua vida, matando ou morrendo. Já o ladrão de galinhas, que ficou no passado, daí o inusitado da notícia, morreu, coitado, eletrocutado por umas míseras galinhas.
João Batista,o bom ladrão,partiu desta no exercício de uma atividade que se perdeu no passado. Não teve a norte heróica dos menos afortunados ladrões dos nossos dias. Cristo, todos sabemos, foi crucificado entre dois ladrões: um de boa índole, e o outro, de má. Ahistória bíblica nos quer dizer que nem todo ladrão é um sujeito mau. Eletrocutado, João Batista reviveu o saudoso e inocente passado dos ladrões de galinha. Deve ter um lugarzinho no Céu, até porque o seu único desejo e azar foram as galinhas de uma cerca eletrificada.
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