Apreciava-se a vida pela janela. Por esse aconchegante retângulo, o sol nascia e se punha no entardecer. Desse espaço, a moça espiava o tempo e desejava que passasse, para ver através dele o seu sonho com olhar de desejo mas cheio de promessas; por ela, as crianças, muitas vezes, expiavam os seus pecados advindos de alguma traquinagem. E o castigo era ficar quieto naquele ventilado vão da casa. (Ora, ora, quantos, como punição, passaram todo o carnaval à janela! No máximo tinham o direito de jogar serpentina ou alguns exíguos confetes.) Por aquele espaço, eu, tantas vezes, ainda pequeno, espiava a vida, que se escorria no andar despreocupado do transeunte a passar pala rua. É verdade: a vida era daquele tamanho. Sentado, às vezes, passava toda a tarde, a ver o tempo e as pessoas se escoarem. O tempo era imenso, intranscurso. Tinha-se tempo para tudo: olhar, conversar, brincar e fofocar. Começava com o nascer do sol e findava quando ele declinava caindo lá no final da rua, com o semblante avermelhado de quem já havia cumprido o seu dever de nos conceder a luz e o calor. Visto daquele vão da casa, o entardecer era de uma beleza de um quadro em cores renascentistas, projetando na visão infantil os conflitos multicores, sendo a vermelhidão que se espraiava e, a um só tempo, arrefecia a crueza salutar dos seus raios.

Era da janela. (Ou era a janela?!) Uma espécie de mirante, onde as crianças nela ficavam, ou sentadas ou apenas com parte do corpo de fora, a projetar-se para a calçada. De lá se espiava a vida. As pessoas passavam. Falavam. Cumprimentavam-se. Perguntavam pelos de casa. Sobre a saúde de quem estivesse acometido de algum mal. Através da janela, vivia-se intensamente o cotidiano. Também, convivia-se. Sem a janela, o homem era tão pequeno, parecendo mais um anão fora do circo, sem a graça das estripulias do picadeiro. Era mais um urso no seu momento de hibernação. Vivia a solidão da impossibilidade de conviver com as alegrias e as tristezas da rua. Da janela tudo se sabia, tintim por tintim. Não havia vida privada. Tudo era devassado. Ai daquele ou daquela que tivesse uma intimidade extraconjugal. O filme da infidelidade descortinava-se pela janela. E, como um clip atrevido, saía de casa em casa, pespegando no infaustoso a denúncia do crime. Não sobrava pedra sobre pedra. E desse reduzido retângulo das porta-e-janelas, captavam-se os fatos e se dava a eles ampla divulgação. Não havia a fronteira entre o privado e o público. A vida, pois, costumava ser mais bela da janela. E, às vezes, infelizmente, triste.
Lembro, ainda, compungido, que recebi, sentado na janela, a notícia do cruel assassinato de um amigo, cujo nome era Pedro Rico, Era um dia de chuva fina, dessas que molha. Percebi o movimento que se fazia no final da rua. Na esquina que dava para a Vila Macaúba. Um carro preto, marca "Prefecti" (ou coisa assim), parava bem no final e alguém era posto no seu interior. Passou pela porta de casa numa velocidade incomum para época. E, de imediato, soube que Pedro Rico tinha sido esfaqueado e fora levado ao Pronto Socorro, da Rua do Passeio. Acionada a rádio Ribamar - a emissora dos Apicuns -, com a presteza de sempre, dava a notícia da sua morte logo ao iniciar atendimento médico de emergência. Era um dia chuvoso e com ar de tristeza, que ficou mais triste ainda. Sem menos esperar, pulei da janela, indo até às imediações da casa da vítima, onde havia uma imensa poça de sangue a se espalhar até a porta de sua casa. Fiquei sabendo, com os detalhes dos que presenciaram, como Pedro Rico fora brutalmente assassinado: esfaqueado, covardemente, como um porco, sem sequer ter direito ao grito de clemência.
Ainda assim, da janela via-se o dia mais claro, sem a opacidade das venezianas, ou dos vidros intransparentes. O céu mais azul. As nuvens mais brancas. A rua sempre mais alegre, com o vendedor de pirulito, de cuscuz, e o verdureiro, sempre pontual, no início da manhã. As tristezas das pessoas eram amenizadas pelos rebuliços alegres das crianças. As conversas atravessavam metros de distância, sem precisar do fio telefônico, chegando com intimidade e nitidez ao ouvido dos interessados. Conversava-se, assim, com mais intimidade. Namorava-se com mais encanto. E o canto da dona-de-casa varava a janela e retumbava pela vizinhança. A voz esganiçada de quem cantava, era a certeza de que o serviço da casa estava sendo feito e a comida, na panela, soltava os primeiros odores. Em cada casa uma verdadeira Maria Callas, cantando a sua opereta doméstica, de alegria ou tristeza. Não havia o aprisionamento da grade. Vivia-se e dormia-se a liberdade da janela escancarada. Ou encostada apenas, sem ferrolho. E ainda uma banda aberta, para que o vento, passando pelo vão, espargisse a sua alegria e amenizasse o calor. Havia nisso a felicidade da janela aberta. Da janela, o mundo tinha a poesia da liberdade. Chico Buarque, esse grande cultor da janela, diz na sua canção que "o tempo passou na janela e só Carolina não viu", e ainda que toda gente homenageia Januária na janela.
Vê-se que a janela, na verdade, é, sobretudo, além de uma expressão cultural de vida, é um referencial poético. Outro artista popular, na sua alegre irreverência, cantava num estribilho carnavalesco que "televisão de pobre é janela de trem". Do que se pode concluir: a janela, além do seu sentido poético e de se constituir num modo de vida, fez-nos escravos do seu lirismo. E indaga-se: o que seria de Chico sem a janela? Bem, deixa pra lá. O que não se pode é viver sem ela. A vida perderia toda a graça de ser. Aliás, está perdendo. Sem janela, somos um Robinson Crusoe encarcerados nas frias paredes da solidão.

* Membro da AML e AIL.