A nossa pátria amada sempre foi cantada em versos e prosa, com as exaltações de um povo heróico, o brado retumbante e o sol da liberdade em raios fúlgidos. Como não poderia deixar de ser, isso a partir do Hino Nacional, um dos símbolos da retórica do nosso arraigado patriotismo. Principalmente quando se recorre aos seus verdejantes versos para exaltar a nossa glória futebolística. Ao fazer a letra do nosso hino, Joaquim Osório Duque-Estrada cantou a todas as nossas virtudes naturais, como sermos gigantes pela própria natureza, o sol da liberdade, sem deixar de referir-se a nossa indolência, por estarmos deitados eternamente em berço esplêndido, ao som do mar e à luz do céu profundo. Ressalto: houve época em que eu não concordava com o “eternamente deitado em berço esplêndido”. Mas nunca culpei os índios ou os negros por essa suposta indolência, até porque todos nós temos na nossa origem a descendência genética desses povos que miscigenaram a raça brasileira.
E os sambistas da nossa pátria amada, hoje vitimados pelo preconceito de alguns que pensam que pertencem a uma raça pura, fazem do samba uma exaltação à genuína raça brasileira, descrevendo-a com os versos como estes: Eu sou barro, eu sou chão / Eu sou pó, eu sou poeira / Sou filha desse torrão / Eu sou a raça brasileira. – Eu moro no pé do morro / Que fica do lado de uma favela / É tão perto que eu acho / Que eu faço parte dela – É lá que eu bato cavaco / E no partido alto sou considerada / Sou o retrato falado / Do samba cadenciado. – Minha filosofia é cantar os meus versos / Com simplicidade, é provar / Que o morro também / Tem direito a felicidade.
Aí está a raça brasileira. Essa mistura do negro, do índio e do branco. É o barro, é o chão, é o pó e a poeira, tudo amassado, com muita história, muita luta, sorrisos e lágrimas, com o sangue de revolucionários como foram Tiradentes e Antônio Conselheiro, para esculpir essa raça brasileira, que não tem por índole ficar deitada em berço esplêndido, como insinua a metáfora pachorrenta de Osório Duque-Estrada.
Bem. O brasileiro não é tão cordial como afirmou Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, isso no sentido de ser submisso. Ele padece de suas inquietações. Característica própria de nossa formação cultural e de nossas origens históricas e biológicas. O negro revoltou-se com a escravidão. O índio também não a aceitou com passividade. Mas, olvidando-se todas essas mazelas, registradas pela nossa história, na República Velha, sempre se cantou o Brasil com desmesurada exaltação. Ary Barroso, compositor nascido em Ubá, Minas Gerais, o fez em dois sambas: Isto aqui, ô ô e Aquarela do Brasil. Os versos do primeiro dizem: Isto aqui, ô ô / É um pouquinha do Brasil, iá iá / Deste Brasil que canta e é feliz, / Feliz, feliz / É também um pouco de uma raça / Que não tem medo de fumaça ai, ai / E não se entrega não. Já Aquarela do Brasil é muito mais ufanista, chegando essa música a ser considerada como uma espécie de hino de nossa pátria amada. Nela, Ary fala no coqueiro que dá coco, e que se abra a cortina do passado, para tirar a mãe preta do cerrado e botar o rei congo no congado. E conclui exaltando a raça: Ô! Esse Brasil lindo e trigueiro / É o meu Brasil brasileiro / Terra de samba e pandeiro.
Esse Brasil do samba exaltação continua sendo o dos nossos sonhos irrealizados. É o Brasil retórico, cantado para que a escola de samba, formada por negros e mulatos, que, num momento de alforria carnavalesca, descem do morro e das favelas para exibirem-se ante os trejeitos repetitivos e desconjuntados do branco encastelado nos camarotes, sob o tilintar das taças de Champagne Dom Pérignon, ou de repetidas doses de um uísque de 12 ou 18 anos. E aí, meu caro, as negras, os negros, os mulatos e as mulatas são o símbolo maior da raça brasileira, até porque a bala perdida, na cabecinha desses alforriados, não chega à passarela do samba.
Chico Buarque, mais atual, portanto mais favelado, mais operário, na sua retórica poética do nosso mundo telúrico, com todas as suas vicissitudes, vai ao cerne da questão. No samba Partido Alto, desmistifica todas essas exaltações do Brasil brasileiro, mulato inzoneiro, e traz à lume a pátria sem retoques: do morro, da favela, da roça, dos subúrbios, da falta de educação libertadora, da desigualdade, e conclui: Deus me deu mão de veludo pra fazer carícia / Deus me deu muitas saudades e muita preguiça / Deus me deu pernas compridas e muita malícia / Pra correr atrás de bola e fugir da polícia / Um dia ainda sou notícia. E, infelizmente, é. Como tragédia. Chico atualiza todo esse cenário dantesco e mostra o operário em Construção, que amou daquela vez como se fosse a última, sentou pra descansar como se fosse sábado / comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe / bebeu e soluçou como se fosse um náufrago / dançou e gargalhou como se ouvisse música / e tropeçou no céu como se fosse um bêbado / e flutuou no ar como se fosse um pássaro / e se acabou no chão feito um pacote plácido / agonizou no meio do passeio público / morreu na contramão atrapalhando o tráfego. É este o Brasil. Sem exaltação.
* Membro da AML e AIL.
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